Thursday 30 September 2021

As armas - tradução de "Des Armes", de Léo Ferré.

As armas, as bonitas, as brilhantes
As que devemos limpar amiúde para o prazer
E que devemos acarinhar como para o prazer
E são, ainda, o que faz sonhar os que vivem em comunhão.

As armas, azuis como a Terra
As que devemos guardar no calor do fundo da alma
Nos olhos, nos corações, nos braços de uma mulher
Que guardamos dentro de nós como se guarda um mistério.

As armas, no segredo dos dias
Sob a erva, no céu e na escrita
As que te farão sonhar muito tarde nas leituras
E que trazem a poesia ao discurso.

As armas, as armas, as armas
E os poetas de serviço ao gatilho
Para acender os últimos cigarros
No fim de um verso francês brilhante como uma lágrima.

Miguel Tiago

Monday 27 September 2021

sem título

as flores caem
o fim é o princípio
e as flores nascem
o princípio é o fim
só a morte semeia a vida

o espaço entre os corpos é o vazio
o mais sólido dos preenchimentos
deixar que me tome nos braços o medo e o precipício
para nos meus tomar o voo da coragem

Miguel Tiago

Friday 24 September 2021

segunda semana

da janela por onde olho
o longe quase me toca a ponta dos dedos
o beijo no ombro
o cheiro da manhã
de maio mesmo aqui
enquanto passa ao longe uma semana
que navega as águas do rio. 

Miguel Tiago

Tuesday 21 September 2021

sem título

que as lâminas de água dos rios se perturbem
e a turbulência agite as moléculas do tempo

do tempo
esse companheiro assassino
que nos enfia o veneno oxidante
pela alma adentro
até aos pulmões.

Miguel Tiago

Saturday 18 September 2021

claridade


quando respiramos fundo
a estrada nunca é demais.
 
Miguel Tiago

Wednesday 15 September 2021

sem título

de quantas vozes o destino
é assassino
de quantos destinos as mãos
são o martelo e o escopro
de todos o céu escuro só mostra
pequenos pontos

a astronomia e o bom senso negam relação

de todos é o sopro
que trazemos dentro do coração
o mais constante
o mais fiel e dedicado artesão

 Miguel Tiago

Sunday 12 September 2021

sem título

quando o futuro é um espinho
que se te crava na garganta
e o presente um peso
que te amarra ao fundo do mar
toda a tua esperança é o passado
e o passado nunca é esperança

Miguel Tiago

Thursday 9 September 2021

sem título

das frases
dos ventos
e das rosas
sopras um beijo
da raiz
da estrada
que me leva
inexorável a ti
como um fruto
ou uma praia
de cujas ondas a espuma
apaga um beijo na areia
que efémero
fica para sempre
escrito
nas letras
de um poema épico
que por falta de dom
nunca saberei escrever.

Miguel Tiago

Monday 6 September 2021

da arte poética

um poema é um conjunto de palavras que requer um trabalho que não tenho, não sei ter, nem ambiciono conseguir ter. a poesia enquanto arte é um fascínio a que felizmente muitos nos podemos entregar porque há quem a ela se entregue como a um cuidado ofício, como a um esforço de uma vida porque um verso perfeito é como uma peça única, com horas de trabalho de concepção, execução, aperfeiçoamento.
o exercício que realizo está muito aquém do esforço dos poetas, tal como estaria aquém do esforço de um escultor eu partir uma rocha casualmente com um escopro.
no entanto é a esse exercício que quero e posso dedicar-me.
não é dizer uma coisa na sua forma perfeita, no seu estado poético. é dizer uma coisa no momento em que ela surge e me toma, mesmo que no estado sólido.

é uma questão mais de tempo que de forma ou conteúdo. se a palavra tem espaço, e tem forma certa, também tem de ter tempo. tempo certo.

esculpir cuidadosamente o verbo, a forma, adaptá-la magistralmente ao conteúdo, é um dom que dificilmente se adquire e, certamente, não é para preguiçosos. 

Miguel Tiago

Friday 3 September 2021

(o-som-da-pequena-flauta-do-amolador)

uma alvorada cortada pelo gume
da coragem afiada
na pedra de amolar corações
e o homem que assobia
e faz chover já não precisa de pedalar mais
na bicicleta parada
porque o tempo acabou
e de ora em diante
só chove. 

Miguel Tiago

Wednesday 1 September 2021

respiração


sem inspiração
asfixia o verbo
 
Miguel Tiago