Thursday 30 May 2013

O PRIMEIRO ASTRONAUTA



O primeiro astronauta
devia ter sido
Silvestre José Nhampose

Só ele
teria sacudido os pés
à entrada da lua.

Só ele
teria pedido
com suave delicadeza:
- Dá licença?


Mia Couto

Monday 27 May 2013

EM GERAL, NÃO SOU NEUTRO


Em geral não sou neutro.
Raro é conseguir sê-lo.
Falta-me para isso
a delicadeza pérfida
dos falsos independentes,
o comodismo cobarde
dos falsos sobranceiros,
a hipocrisia velhaca
dos falsos melindrosos.

Armindo Rodrigues

Friday 24 May 2013

VILANCETE CASTELHANO DE GIL VICENTE



Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
só da morte é conhecida.
Se a lágrimas for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.
E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem.

Carlos de Oliveira

Tuesday 21 May 2013

TODA ESPERANÇA É PERDIDA


Toda esperança é perdida,
tudo veo a falecer,
e o que fica da vida
ficou para m'eu perder.

Aquela esperança minha,
assi falsa e vã como era,
c'os olhos que eu nela tinha,
a todo o mal se atrevera.
Ora ela é toda perdida;
Mas não m'hão de fazer crer
que não há mais nesta vida
senão nascer e morrer.

Sá de Miranda

Saturday 18 May 2013

Arte poética



Liberdade
é também vontade.

Benditas roseiras
que em vez de rosas
dão nuvens e bandeiras.


José Gomes Ferreira

Wednesday 15 May 2013

CANTIGA PARTINDO-SE


Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d'esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

João Roiz de Castel-Branco
(Século XV)

Sunday 12 May 2013

SONETO


Sete anos de pastor, Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la:
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se não a tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: - Mais servira, se não fora
Pera tão longo amor tão curta a vida!

Camões

Thursday 9 May 2013

MÁSCARA MORTUÁRIA DE GRACILIANO RAMOS


Feito só, sua máscara paterna,
sua máscara tosca de acridoce
feição, sua máscara austerizou-se
numa preclara decisão eterna.

Feito só, feito pó, desencantou-se
nele o íntimo arcanjo, a chama interna
da paixão em que sempre se queimou
seu duro corpo que ora longe inverna.

Feito pó, feito pólen, feito fibra,
feito pedra, feito o que é morto e vibra,
sua máscara enxuta de homem forte

Isto revela em seu silêncio à escuta:
Numa severa afirmação da luta,
uma impassível negação das morte.

Vinícius de Moraes

Monday 6 May 2013

PARÁFRASE DE RONSARD


Foi para vós que ontem colhi, senhora,
este ramo de flores que ora envio.
Não no houvesse colhido e o vento e o frio
tê-las-iam crestado antes da aurora.

Meditai nesse exemplo, que se agora
não sei mais do que o vosso outro macio
rosto, nem boca de melhor feitio,
a tudo a idade afeia sem demora.

Senhora, o tempo foge... o tempo foge...
Com pouco morreremos - e amanhã
já não seremos o que somos hoje...

Por que é que o vosso coração hesita?
O tempo foge... A vida é breve e é vã...
Por isso amai-me... enquanto sois bonita.

Manuel Bandeira

Friday 3 May 2013

CANTO E LAMENTAÇÃO NA CIDADE OCUPADA


6.

Pelo silêncio na planície pela tranquilidade em tua voz
pelos teus olhos verdes estelares pelo teu corpo líquido de bruma
pelo direito de seguir de mãos dadas na solidão nocturna
lutaremos meu Amor

Pela infância que fomos pelo jardim escondido que não teve
o nosso amor
pelo pão que nos recusam pela liberdade sem fronteiras
pelas manhãs de sol sem mácula de grades
lutaremos meu Amor

Pela dádiva mútua da nossa carne mártir
pela alegria em teu sorriso claro pelo teu sonho imaterial
pela cidade escravizada pela doçura de um beijo à despedida
lutaremos meu Amor

Pelos meninos tristes suburbanos
contra o peso da angústia contra o medo
contra a seta de fogo traiçoeira cravada
em nosso coração aberto
lutaremos meu Amor

Na aparência sózinhos multidão na verdade
lutaremos meu Amor

Daniel Filipe
(in A Invenção do Amor e outros poemas)

Wednesday 1 May 2013

MAL-ME-QUER, BEM-ME-QUER


Falemos, pois, de amor: serenamente.
A esfinge que nós somos, adormece cansada
e a criança de um dia olha-nos, frente a frente.

(Muito, pouco, nada).

Daniel Filipe
(in Pátria, lugar de exílio)