Saturday 30 July 2016

Dia 239



Olhei-te e fiquei sem palavras. Eu, que não gosto nada de ficar sem munições.

Joaquim Pessoa

Wednesday 27 July 2016

RENTE AO CHÃO


1. 
Era azul e tinha os olhos de deus,
o meu pequeno persa
- agora rente ao chão onde iria?,
a voz quebrada,
o peso da terra sobre os flancos,
a luz deserta na pupila.

2. 
Chamo por ti; digo o teu nome
tropeçando sílaba
a sílaba; repito o teu nome
para que voltes com a lua
nova, o sol de Março,
o pão de cada dia:
o rigor do frio, a sua teia branca,
por companhia.

Eugénio de Andrade
(«Rente ao Dizer» - 1992)

Sunday 24 July 2016

A Tua Boca


A tua boca. A tua boca.
Oh, também a tua boca.
Um túnel para a minha noite.
Um poço para a minha sede.


Os fios dormentes de água
que a tua língua solta num grito cor-de-rosa
e a minha língua sorve e canta
e os meus dentes mordem derramando a seiva
da tua primavera sem palavras
o poema inquieto e livre que a tua boca oferece
à minha boca.

As loucas bebedeiras de ternura
por essa viagem até ao sangue.
Os beijos como fogueiras.
As línguas como rosas.

Oh, a tua boca para a minha boca.

Joaquim Pessoa

Thursday 21 July 2016

O SORRISO, OUTRA VEZ

Tu partiste nos quatro versos
que antecederam estas linhas;
ou partiu o teu sorriso, porque tu
sempre moraste no teu sorriso,
chuva verde nas folhas, o teu sorriso,
bater de asas no pulso, o teu sorriso,
e esse sabor, esse ardor da luz
sobre os lábios, quando os lábios são
rumor de sol nas ruas, o teu sorriso.

Eugénio de Andrade

Monday 18 July 2016

Chamar-te meu amor


Dizer que tudo em ti é movimento
e que há corças nas selvas em redor
do amor que às vezes faço em pensamento
ou do que eu penso quando faço amor.


Dizer que em tudo escuto a tua voz
no mar no vento na boca das searas
o maior amor do mundo somos nós
cobrindo a solidão de pedras raras.

Dizer tudo o que eu digo nunca basta
pois para ti não chegam as palavras
meu amor é uma expressão que já está gasta
mas tem sempre um aroma de ervas bravas.

É por ti tudo o que faço e digo e chamo
por ti eu tudo invento e tudo esqueço
dou tudo o que há em mim quando te amo
mas nem sei meu amor se te conheço.

Joaquim Pessoa

Friday 15 July 2016

BREAKFAST EM MASPALOMAS

Das coisas que menos esperava
num hotel de cinco estrelas
era encontrar um gato
no meu prato de torradas.
Como num dos poemas últimos de Montale,
enquanto o chá arrefecia,
foi-se afastando pelo muro do terraço
em leves e femininos passos de dança,
como o faria Nureiev se tivesse
tomado comigo o pequeno almoço.

Eugénio de Andrade

Tuesday 12 July 2016

POEMA CENTÉSIMO TERCEIRO


"Para quando puder", é não ter
destino algum. Todo o sentido da vida
deixa de fazer sentido quando os sentidos
ordenam que me afaste, que coma de mim mesmo
o pão de cada dia. Ah, sim, "para quando puder"!
O sonho também traz sabedoria mas
até o sonho necessita de tempo. Pertenço
ao canto dos pássaros e, vejam! tenho as raízes
a florir! É por isso que não acredito no destino.
Acredito nas palavras. Acredito nas coisas
que podem ser mais fortes do que eu: beijos,
poemas, relâmpagos, ou raios de sol. O poeta
que há dentro de mim não tem destino,
o reencontro é sempre "para quando puder",
e isso divide-nos. Torna-nos, não direi desconhecidos,
mas irmãos com uma relação desconfortável
e, por vezes, nada tranquila. A boca é
uma espécie de coração, e o coração uma espécie
de moinho a rodar, a rodar sempre, macerando
a voz, moendo as sílabas para conseguir
a farinha própria para o pão das palavras
que quero servir à mesa do amor. E convido
o poeta para comermos em conjunto, mas
se não for possível nessa altura, ele sabe,
ficará, então, "para quando puder"!

Joaquim Pessoa

Saturday 9 July 2016

LUGAR DO SOL

Há um lugar na mesa onde a luz
abdicou do seu ofício.
Já foi do sol
e do trigo esse lugar - agora
por mais que escutes, não voltarás
a ouvir a voz de quem,
há muitos anos, era a delicadeza
da terra a falar: «Não sujes
a toalha»; «Não comes a maçã?»
Também já não há quem se debruce
na janela para sentir
o corpo atravessado pela manhã.
Talvez só um ou outro verso
consiga juntar no seu ritmo
luz, voz, maçã.

Eugénio de Andrade

Wednesday 6 July 2016

Nos olhos de Isa a chuva grita e a noite


Nos olhos de Isa a chuva grita e a noite
Acende fogueiras.

Os meus olhos param. Nos olhos de Isa.

Oh, nos olhos de Isa espreguiça-se a madrugada
E o vento acorda para ajudar os pássaros a voar
E as árvores a acenar-lhes uma bandeira de folhas, uma tristeza verde.

Nos olhos de Isa.

Nos olhos de Isa a manhã explode num inferno de estrelas,
Num clarão de silêncio, em estilhaços de rosas, pétalas de sombra.

Nos olhos de Isa os poetas vagueiam num bosque de mel
Onde as abelhas constroem a tarde
Desesperadamente.
Nos olhos de Isa ninguém repara na minha solidão.

Joaquim Pessoa

Sunday 3 July 2016

OS TRABALHOS DA MÃO

Começo a dar-me conta: a mão
que escreve os versos
envelheceu. Deixou de amar as areias
das dunas, as tardes de chuva
miúda, o orvalho matinal
dos cardos. Prefere agora as sílabas
da sua aflição.
Sempre trabalhou mais que sua irmã,
um pouco mimada, um pouco
preguiçosa, mais bonita.
A si coube sempre
a tarefa mais dura: semear, colher,
coser, esfregar. Mas também
acariciar, é certo. A exigência,
o rigor, acabaram por fatigá-la.
O fim não pode tardar: oxalá
tenha em conta a sua nobreza.

Eugénio de Andrade

Friday 1 July 2016

Canção amarga


Descubro em ti a dor que eu próprio invento
A fúria que me bate. A força que me chama.
Amor agreste. A rosa sobre a lama.
Chuva de abril. Anel de sofrimento. 


Descubro em mim o porto aonde moras.
E a tua ausência na cama onde me deito.
Invento a flor mais triste quando choras
e a noite principia no meu leito.

Tu és o linho o beijo a despedida
és o instante a hora a vida inteira
és o meu lume o fogo da lareira
a fúria da razão mesmo vencida.

Eu sou o vinho a raiva ou a loucura
já nem sou nada sou tudo o que quiseres.
Mas onde estás? Onde é que eu te procuro?
Pássaro triste irei onde estiveres.

Ai meu amor meu canto de amargura
morres em mim tão perto de viver!

Joaquim Pessoa