Tuesday 30 May 2017

DEIXEM-SE DE FINGIR...

Deixem-se de fingir de heróis de esquerda,
com bancos e bancas de advogados, redacções,
editoriais, automóvel, bolsas e cátedras,
quintas herdadas, páginas literárias.
Deixem-se de uivar em defesa de ismos
que nenhum vos pertence ou a que pertenceis
a não ser para dançar a dança desnalgada
dos que não têm vergonha do povo português.
O único ismo em consonância com os arrotos
de bem comidos, e os rosnidos de instalados
naquilo que criticam disfarçando-se,
é o relismo - de reles. Nada mais.

Jorge de Sena

Saturday 27 May 2017

POEMAS DO CÃO DANADO (3)

Eis-nos boiando, aflitos,
só as narinas e os braços fora de água,
prestes a sucumbir.
E a terra tam perto cheia de gente alegre...
Um gente endinheirada e bruta,
pisando todas as flores.
Já nem sabemos se as lágrimas
serão gotas do mar que nos envolve,
se é o mar a água das nossas próprias lágrimas.

E a terra tam perto,
cheia daquela gente endinheirada e bruta,
pisando todas as flores...
E nós para aqui boiando,
escorraçados afinal da própria casa,
como quem não paga a renda.
Ah que é como um país nosso invadido por estrangeiros!

E, narinas abertas numa ânsia de vida,
miseráveis, covardes,
sem a coragem de nos deixarmos sucumbir,
cair pró fundo, acabar!

Mário Dionísio
(«O Homem Sozinho Sentado na Beira do Rio»)

Wednesday 24 May 2017

SONETO DA METAMORFOSE


Mãos, simples mãos, moldaram os meus versos
e pés humanos pisam o que escrevo.
Aos outros que conquistem universos
e a mim que pague ao povo o que lhe devo.

Mesmo que os dias sejam adversos,
é um trevo a missão a que me atrevo,
dia e noite seus gestos são diversos
- detesta o escuro, de dia abre-se o trevo.

Abre-se como o pranto, como as fontes
que irrompem das montanhas e dos montes,
descem aos vales, vão até às casas...

Um soneto estremece a manhã cálida
e o povo, num silêncio de crisálida,
forja, no sofrimento, as suas asas.

Sidónio Muralha

Sunday 21 May 2017

DOIS POEMAS DO SONHO

I

Quando as pálpebras caíram nos diversos recantos da cidade,
cada vagabundo só se conhecia a si mesmo,
à sua miséria e ao seu desgosto da vida.

Mas o vento fustigou-os indiferentemente
e a chuva ensopou-os a todos da mesma maneira inóspita e miserável.

E o sonho subiu e juntou-se ao ar.
Cada velha sinfonia se desflorou numa nova sinfonia.
A chuva secou nos fatos e as lágrimas nos olhos.

E quando as pálpebras se ergueram nos diversos recantos da cidade,
todos os vagabundos se conheciam
e sorriam uns para os outros.


II

Desde sempre que o sol surge todas as manhãs anunciando um novo dia.
Desde sempre que as sombras se diluem.
Os homens saltam das camas amassadas
e voltam ao trabalho duro.

Desde sempre que a vida finge um recomeço.
(mas a verdade é que apenas continua
e os homens acordam já cansados.)

Desde sempre que o sol surge todas as manhãs anunciando um novo dia.

Mas nunca tanta alegria.
Nunca os bons-dias dos homens foram bons como os de hoje.
Nunca os cantos das aves foram assim expansivos
e penetraram tanto até ao fundo...

É que nunca a noite foi tão longa
e a miséria das almas tão intensa.

É que nunca em tudo se espelhou
esta suave ternura inexplicável
duma possibilidade que desponta.

Mário Dionísio

Thursday 18 May 2017

O HERÓI


O herói da guerra
possui 365 medalhas,
uma para cada dia do ano
(só nos anos bissextos
tem um dia de folga).

O herói da guerra
tem um desencontro
marcado com ele mesmo
(sua vocação era ser homem
e fizeram dele um herói).

O herói da guerra
precisa esquecer
(num gesto heróico
fuma heroína).

Sidónio Muralha

Monday 15 May 2017

POEMA DA MULHER NOVA


Vejo-te no mundo que não pára,
como um grande lenço rubro desfraldado.
Vejo-te em mim quando me sinto massa
com milhões de braços e de pernas e uma cabeça de anjo.
Vejo-te na vida em marcha,
nas mãos estendidas.
Vejo-te em toda a vibração,
nas plantações cobertas de girassóis e de papoulas,
no topo dos tractores pulverizando a terra.

Vejo-te nua das sedas
com a boca rasgada numa canção de futuro
como um punho ameaçador à pestilência dos homens.

Vejo-te bela
com os cabelos ao vento,
em frente,
sem um talvez: perfeita.

Vejo-te mãe de milhões de homens novos,
de rosto calmo e olhos firmes,
através das labaredas e do fumo,
sem país e sem lar, a caminho da vida
- na descoberta constante.

Mário Dionísio
(«Com Todos os Homens nas Estradas do Mundo»)

Friday 12 May 2017

NATAL


Velho Menino-Deus que me vens ver
quando o ano passou e as dores passaram:
sim, pedi-te o brinquedo, e queria-o ter
mas quando as minhas dores o desejaram...

Agora, outras quimeras me tentaram
em reinos onde tu não tens poder...
Outras mãos mentirosas me acenaram
a chamar, a mostrar e a prometer...

Vem, apesar de tudo, se queres vir.
Vem com a neve nos ombros, a sorrir
a quem nunca doiraste a solidão...

Mas o brinquedo... quebra-o no caminho.
O que eu chorei por ele! Era de arminho
e batia-lhe dentro um coração.

Miguel Torga

Tuesday 9 May 2017

SANGUE IMPETUOSO

Sangue impetuoso,
não te submetas nunca!
Ri-te das estreitezas capilares
ou de qualquer compressa para te reter.
Não cedas nunca!

Caminha, corre, salta!

Salta as barreiras por maiores que sejam.
Caminha por mais ásperos que sejam os caminhos.

Corre, salta!

És a vida.
A vida está na tua marcha invulnerável,
na tua rota sem tréguas, nem limites, nem curvas, nem paragens,
na tua cavalgada de horizontes rasgados,
em teu grito selvagem.

Corre, salta!

E se não te cumprires em mim,
não pares ainda, não cedas: corre!
Rasga à punhada as paredes de treva.
Salta e estilhaça os diques, as montanhas!
Salta nas veias dos meus filhos ou meus netos,
mas segue:
por maiores que sejam as barreiras,
por mais ásperos que sejam os caminhos.

Caminha, corre, salta,
- rebeldemente, impetuosamente!

Mário Dionísio
(«Com Todos os Homens nas Estradas do Mundo»)

Saturday 6 May 2017

ODE À AMIZADE

Por teu verbo em passes de mágica
eu te louvo
quando pões «o coração nas mãos»
ou entre
os dentes
«o coração na boca»

Por tua palavra gesto e fruto
que nos tempos dos tempos renovas
eu te louvo
não pelo gesto que és
mas pelo fruto que provas

Por tua faca e suas artes
por teu punho a romper do seio
eu te louvo
pão único que repartes
migalha cortada ao meio

Fome nenhuma fica impune

Teu gume é como golpe na água:
a lâmina que a retalha
é a mesma que a reúne.

Luís Veiga Leitão

Wednesday 3 May 2017

DEPOIS DE MIM

Um dia (sei-o bem)
os campos ficarão eternamente floridos
e a chaga que me inquieta
deixará de sangrar em todos os peitos.
Os homens já não estarão curvados sobre as terras.
E a leiteira não virá mais trazer-me as bilhas com o seu ar de humildade.

A mulher dos ovos e o homem da fruta,
o rapaz pobre envergonhado de dizer: eu sei,
o camponês prestando contas da estação,
os vultos negros do subsolo,
a linda mãe solteira,
deixarão de sorrir com humildade.

Humildade ficará nos dicionários como esqueleto em museu arqueológico.

Eu próprio nunca mais farei baixar as pálpebras
e deixarei que o sol me inunde bem, nos olhos.

Um dia
(ah! sinto-o bem para além das milhentas folhas de todos os tratados)
uma onda de amor invadirá tudo e todos.
E será uma primavera diferente de todas as primaveras,
porque ainda não foram inventadas as palavras para exprimi-la.

Simplesmente, nesse dia primeiro da nova criação, eu já terei partido.
A minha carne estará funda de mais para sentir o beliscão da alegria.
E os olhos cheios de terra
não verão os homens levantados
nem os campos eternamente floridos
nem a leiteira sem o seu ar de humildade.

Porém que importa?
Um dia, sei-o bem, todos estarão até que enfim de acordo.
Portanto, que importa a minha ausência?
Que importa que eu não venha a saborear os frutos da própria árvore?
Que é isso
ao pé da inabalável certeza desse dia admirável

Mário Dionísio
(«Com Todos os Homens nas Estradas do Mundo»)

Monday 1 May 2017

COM ILUSÕES OU NÃO...


Com ilusões ou não,
venha o futuro,
pois por enquanto, ao menos,
não é escuro.


Armindo Rodrigues