Tuesday 31 December 2019

NA PASSAGEM DE UM ANO


Erros nossos não são de toda a gente
tropeçamos às vezes na entrega
mas retomamos sempre a marcha em frente
massa humana que nada desagrega.

Para nós o passado e o presente
são futuro no qual o povo pega
com as suas mãos de luz incandescente
que aquece que deslumbra mas não cega.

Para nós não há tempo. O tempo é vento
soprando ano após ano sobre a história
que para nós é vida e não memória.

Por isso é que no tempo em movimento
cada ano que passa é menos tempo
para chegar ao tempo da vitória.

José Carlos Ary dos Santos

Friday 27 December 2019

PRELÚDIO


Quando o descobridor chegou à primeira ilha
nem homens nus
nem mulheres nuas
espreitando
inocentes e medrosos
detrás da vegetação.
Nem setas envenenadas vindas no ar
nem gritos de alarme e de guerra
escoando pelos montes.

Havia somente
as aves de rapina
de garras afiadas
as aves marítimas
de voo largo
as aves canoras
assobiando inéditas melodias.

E a vegetação
cujas sementes vieram presas
nas asas dos pássaros
ao serem arrastadas para cá
pelas fúrias dos temporais.

Quando o descobridor chegou
e saltou da proa do escaler varado na praia
enterrando
o pé direito na areia molhada

e se persignou
receoso ainda e surpreso
pensando n'El-Rei
nessa hora então
nessa hora inicial
começou a cumprir-se
este destino ainda de todos nós.

Jorge Barbosa

Tuesday 24 December 2019

Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.


António Gedeão

Saturday 21 December 2019

EM TORNO DA MINHA BAÍA


Aqui, na areia,
sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrente
sobre o cais desmantelado,
caindo em ruínas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num voo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na ,ais bela de todas as lições:
HUMANIDADE.

Alda do Espírito Santo

Thursday 19 December 2019

VIAGEM ATRAVÉS DE UMA FATIA DE BOLO-REI



Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.

Eram quase duas horas da manhã
e eu perguntei-lhe
se queria comer alguma coisa.
Disse que sim. Mas que
estava com muita pressa.

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe
uma sanduíche de fiambre
um copo de vinho
uma fatia de bolo-rei.
Estava de pé
comia como se fosse a primeira vez
desde a infância.

-Há quantos anos
deixa cá ver
há quantos anos é que eu não comia
bolo-rei?
Este é bom, sabe a erva-doce
e a ovos.
(Caíam-lhe migalhas
aparava-as com a outra mão
em concha)

- Comes outra fatia, camarada?

- Isso não.
Estou atrasado já.
Mas se ma embrulhasses...

Através da janela
do quarto às escuras
fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche
seguir pela Rua dos Lusíadas.

Nenhum de nós sabia
que estava já erguida a pirâmide do silêncio
à espera dele
num breve prazo.

Quando talvez o gosto do bolo-rei
mais forte do que nunca
tivesse ainda na boca.


Mário Castrim

Memória breve de uma noite longa



Éramos 20 e ocupávamos uma sala da Prisão da PIDE, no Porto - Rua do Heroísmo... - paredes meias com outra sala igual e com igual número de camaradas.


Era Natal.

A notícia chegou-nos à noite - noite fria, fria - através de batidas na parede:
A PIDE ASSASSINOU O ZÉ DIAS COELHO.

Fez-se um silêncio.
Depois, alguém deu um murro na mesa de madeira e disse em voz rouca: Assassinos.

Novamente o silêncio.
Um camarada começa a andar de um lado para o outro a todo o comprimento da sala.
Pouco a pouco, todos o imitámos, alguns com brilho de lágrimas nos olhos.
Todos em silêncio.

À hora habitual, o guarda de serviço veio apagar a luz: era a hora do silêncio de todos os dias, agora interrompido com o barulho da chuva que começara a cair.

Uma voz - alentejana, límpida, clara - emerge do silêncio, cantando baixinho, muito baixinho:

«Noite imensa, noite imensa de amargura,
semeada de baionetas e ameaças.
Uma estrela vem rasgando a noite escura,
traz a morte das algemas e mordaças»

Três, quatro vozes juntam-se-lhe, baixinho, muito baixinho:

«O caminho é pedregoso e duro
mas o sonho que nos guia é puro»

E agora é o coro contido de 20 vozes:

«As espadas, as espadas,
impotentes vão tombar despedaçadas...
E as searas a crescer na terra
são promessas de beleza e pão,
mundo novo, mundo novo,
poderosa e triunfal canção.
de amor, de amor»...

Outra vez o silêncio - e a chuva, agora mais intensa.
Em vários bailiques brilham as pontas acesas dos cigarros.

E faz-se ouvir uma voz serena e cheia de força:

«Até amanhá, camaradas».
 
 
Fernando Samuel

Sunday 15 December 2019

ÇA IRA!


Isto vai, caro amigo.
Não como nós queremos, é certo,
mas isto vai.

Por noites de insónia e alcatrão
por laranjas e lábios ressequidos
por desespero na voz e escuridão
isto vai, caro amigo.

Pelo cabo axial que liga a nossa esperança
pela luz dos cabelos, pelo sal
pela palavra remo, pela palavra ódio
isto vai, caro amigo.

Pela ternura e pela confiança
pela vontade e força, as nossas casas
pelo fervor com que inventamos (e depois
calamos)
isto vai, caro amigo.

Pelos carris do medo, pelas árvores
pela inocência e fome, pelos perigos
pelos sinais fraternos, pelas lágrimas
isto vai, caro amigo.

Pela rudeza do espaço
e em jardins falsíssimos

isto vai, caro amigo.

João Rui de Sousa

Thursday 12 December 2019

DA VIOLÊNCIA


Do rio que tudo arrasta
se diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas
as margens que o comprimem.

Brecht

Monday 9 December 2019

AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ!...


Adriano Moreira vai ser agraciado com o grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade do Mindelo, em Cabo Verde.
A cerimónia decorrerá amanhã na referida Universidade.

Adriano Moreira foi, como estamos lembrados (estaremos?..), «ministro do Ultramar» de Salazar e, enquanto tal, coube-lhe assinar a reabertura do Campo de Concentração do Tarrafal, para onde, desde logo, começaram a ser enviados militantes dos movimentos de libertação das colónias.

Têm razão, por isso, os antigos prisioneiros do Campo de Concentração ao manifestarem o seu repúdio pela cerimónia.
E tem razão o Presidente da Associação Cabo-Verdiana de Ex-Presos Políticos, Pedro Martins, ao considerar a distinção a Adriano Moreira «um insulto»; e ao afirmar que «a distinção é contra tudo o que lutámos para pôr fim ao regime colonial fascista».

Recorde-se que o Campo de Concentração do Tarrafal - que viria a ficar conhecido como Campo da Morte Lenta - foi criado em Abril de 1936 e inaugurado em Setembro do mesmo ano, essencialmente com presos da revolta da Marinha Grande e da revolta dos Marinheiros.
«Quem vem para o Tarrafal vem para morrer» - diziam os directores do Campo, Manuel dos Reis e João da Silva.
«Eu não estou aqui para curar doentes, mas para passar certidões de óbito» - dizia o médico do Campo, Esmeraldo Pais Prata.
Os 340 antifascistas que estiveram presos no Tarrafal somaram aí um total de dois mil anos, onze meses e cinco dias de prisão - e 32 deles, entre os quais o secretário-geral do PCP, Bento Gonçalves, foram friamente assassinados.
Em 1954, graças à luta do povo português e à solidariedade internacional, o fascismo foi forçado a encerrar o Campo, que reabriria em 1961 com patriotas dos movimentos de libertação das colónias portuguesas - desta vez por ordem do ministro Adriano Moreira, que agora vai ser Doutor Honoris Causa, pela Universidade do Mindelo...

As voltas que o mundo dá!...
 
Fernando Samuel
9.12.2011

Friday 6 December 2019

UM ACTO DE CORAGEM

A pretexto da morte, no sábado passado, de Artur Quaresma - que foi futebolista do Belenenses e da selecção nacional, da qual chegou a ser Capitão - o DN de hoje relembra o célebre desafio de futebol Portugal-Espanha, realizado em 30 de Janeiro de 1938, em plena guerra civil espanhola, e decidido por Salazar e Franco.

Era hábito - decorrente de imposição do governo de Salazar - os jogadores (e a assistência, ou parte dela...) fazerem a saudação fascista quando, antes do início dos jogos, tocava o Hino Nacional.
E assim deveria ter sido naquele Portugal-Espanha, ao qual foram assistir altos dirigentes do regime, para além dos embaixadores da Itália fascista e da Alemanha nazi.

Todavia, perante o espanto geral, naquele dia o ritual não foi cumprido por três dos futebolistas da Selecção.
Artur Quaresma, Mariano Amaro e José Simões, todos do Belenenses, cada um à sua maneira, não fizeram a saudação fascista: Quaresma ficou perfilado, impassível e com as mãos atrás das costas; e Amaro e Simões ergueram os punhos cerrados - os punhos direitos... o que foi considerado ainda mais grave já que se tratava da saudação comunista...

Mal o jogo terminou, os três futebolistas foram presos para interrogatórios pela PVDE - a polícia política que, mais tarde, viria a chamar-se PIDE, e que Marcelo Caetano baptizaria de DGS nos últimos anos do fascismo.

Mais de seis décadas depois, em Janeiro de 2004, Artur Quaresma diria ao jornal Record: «Fomos à PIDE e eles (os dois colegas) ficaram. Eu, deixando o braço em baixo, disse que me esquecera de o levantar. Não houve mais problemas porque o Belenenses moveu influências. Nunca fui político, mas embirrava com aquelas coisas do fascismo. O Barreiro era foco de comunistas opositores ao regime e eu era amigo de muitos. Mas fiz aquilo sem premeditação, foi um acto natural».

Aqui se saúda a atitude dos três futebolistas, o acto corajoso de que foram protagonistas.
Um acto que mostra que a resistência ao fascismo ao longo do quase meio século da sua existência, assumiu as mais diversas formas e por vezes se fez sentir onde menos seria de esperar...
Fernando Samuel
6.12.2011

Wednesday 4 December 2019

A FUGA DE CAXIAS



Foi há cinquenta anos: precisamente o dia 4 de Dezembro de 1961.

«A fuga foi minuciosa e longamente estudada e organizada, sob a orientação do Partido.
Um dos fugitivos, António Tereso, trabalhador da Carris preso em Caxias, tinha fingido ceder à polícia e "rachar" de modo a poder proceder ao reconhecimento do Forte e encontrar meio de fuga.
Meses depois, apresentou-se a oportunidade de a fuga se concretizar utilizando um automóvel blindado que estava em reparação no Forte e que António Tereso se oferecera para reparar.

No dia marcado, 4 de Dezembro de 1961, enquanto os presos encenavam um desafio de futebol num pátio que a PIDE considerava o mais seguro, António Tereso foi buscar o automóvel à garagem e, em marcha atrás, conduziu-o para o pátio.
Ao sinal de "Golo!", gritado por José Magro, os presos entram no carro que arranca de imediato, em grande velocidade, através do túnel, até chegar ao portão do Forte contra o qual embate violentamente e despedaça, lançando-se para o exterior e desaparecendo perseguido pelos tiros da GNR.
No carro seguiam dirigentes e quadros destacados do Partido: Francisco Miguel, José Magro, Guilherme da Costa Carvalho, António Gervásio, Domingos Abrantes, Ilídio Esteves - militantes comunistas que, como os que, em Janeiro de 1960, se tinham evadido de Peniche, regressaram à luta clandestina pela liberdade e pela democracia»
(entre os fugitivos encontrava-se também Rolando Verdial que, posteriormente, traíu o Partido e se passou para a PIDE).

Tuesday 3 December 2019

HINO DE CAXIAS



Longos corredores nas trevas percorremos
sob o olhar feroz dos carcereiros
mas nem a luz dos olhos que perdemos
nos faz perder fé nos companheiros

Vá camarada, mais um passo,
já uma estrela se levanta,
cada fio de vontade são dois braços
e cada braço uma alavanca.

Oiço ruírem os muros,
quebrarem-se as grades de ferro da nossa prisão,
treme carrasco que a morte te espera
na aurora de fogo da libertação

Cortam o sol por sobre os nossos olhos,
muros e grades fecham horizontes,
mas nós sabemos onde a vida passa,
o nosso olhar é o mais alto dos montes.

Vá camarada, mais um passo,
já uma estrela se levanta,
cada fio de vontade são dois braços
e cada braço é uma alavanca

Oiço ruírem os muros,
quebrarem-se as grades de ferro da nossa prisão,
treme carrasco que a morte te espera
na aurora de fogo da libertação

Podem rasgar meu corpo à chicotada,
podem calar meu grito enrouquecido,
para viver de alma ajoelhada
vale bem mais morrer de rosto erguido.

Vá, camarada, mais um passo,
já uma estrela se levanta,
cada fio de vontade são dois braços
e cada braço uma alavanca.

Oiço ruírem os muros,
quebrarem-se as grades de ferro da nossa prisão,
treme carrasco que a morte te espera
na aurora de fogo da libertação.

Sunday 1 December 2019

BURGUESES


Não tenho pena dos burgueses
vencidos. E quando penso que vou ter pena,
aperto bem os dentes e fecho bem os olhos.
Penso nos meus longos dias sem sapatos nem rosas.
Penso nos meus longos dias sem chapéu nem nuvens.
Penso nos meus longos dias sem camisa nem sonhos.
Penso nos meus longos dias com a pele proibida.
Penso nos meus longos dias.

- Isto é um clube. Aqui não pode entrar.
- A lista já está cheia.
- Não há quarto no hotel.
- O senhor não está.
- Rapariga precisa-se.
- Fraude nas eleições.
- Grande baile para cegos.
- A taluda saíu em Santa Clara.
- Tômbola para órfãos.
- O cavalheiro está em Paris.
- A senhora marquesa não recebe.

Enfim, recordo tudo.
E como recordo tudo,
que caralho me pede você que faça?
E além disso, pergunte-lhes.
Com certeza
que eles também se lembram.

Nicolas Guillén
(In Poesia Cubana da Revolução)

Saturday 30 November 2019

MANGA, MANGUINHA...


A manga é um símbolo de África:
no seu sabor
no seu aroma
na sua cor
na sua forma.

A manga tem o feitio do coração!
A África também.
Tem um sabor forte, quente e doce!
A África também.
Tem um tom rubro-moreno
como os poentes e as queimadas
da minha Terra apaixonada.

Por isso te gosto e te saboreio
ó manga!
Coração vegetal, doce e ameno.

Tu és o amor do abacate
porque ele guarda no seu meio
um coração que por ti bate;

bate, bate, que bate!
Ó manga, manguinha,
amor do abacate!

Tomás Jorge

Wednesday 27 November 2019

PAREDES ALTAS...


Paredes altas, ou baixas,
estacarias, tapumes, redes de arame,
grades,
meros marcos, cães de guarda,
sinais de posse,
quando acabareis?
Quando acabarás, cobiça?
Quando acabarás, satisfação reles
e ostentosa
de explorar os outros?

Armindo Rodrigues

Sunday 24 November 2019

A BOMBA


O primeiro sopro arrancou-lhe a roupa;
o imediato levou também a carne.
Ao longo da rua
durante alguns segundos correu o esqueleto.
Mas a rua já não estava,
estava toda no ar;
de lá caíam bocados de prédios, bocados
de crianças, restos de cadilaques...
O esqueleto não compreendia sozinho
aquela situação:
deixou-se tombar sobre algumas pedras radioactivas
e permitiu na queda o extravio de alguns ossos.

(Caso curioso: o coração
pulsou ainda três ou quatro vezes
entre o gradeamento das costelas.)

Egito Gonçalves

Thursday 21 November 2019

A QUEIMA DOS LIVROS


Quando o Regime ordenou que queimassem em público
os livros de saber nocivo, e por toda a parte
os bois foram forçados a puxar carroças
carregadas de livros para a fogueira,
um poeta expulso, um dos melhores,
ao estudar a lista
dos queimados, descobriu, horrorizado, que os seus
livros tinham sido esquecidos.
Correu para a secretária
alado de cólera e escreveu uma carta aos do Poder.
Queimai-me! escreveu com pena veloz, queimai-me!
Não me façais isso! Não me deixeis de fora!
Não disse eu sempre a verdade nos meus livros?
E agora tratais-me como um mentiroso! Ordeno-vos:
Queimai-me!

Brecht

Monday 18 November 2019

IN MEMORIAM


Esses mortos difíceis
que não acabam de morrer
dentro de nós; o sorriso
de fotografia,
a carícia suspensa, as folhas
dos estios persistindo
na poeira; difíceis;
o suor dos cavalos, o sorriso,
como já disse, nos lábios,
nas folhas dos livros;
não acabam de morrer;
tão difíceis, os amigos.

Eugénio de Andrade

Friday 15 November 2019

OS CANTOS DOS HOMENS


Os cantos dos homens são mais belos do que os homens,
mais densos de esperança,
mais tristes,
com uma vida mais longa.

Mais do que os homens eu amei os seus cantos.
Consegui viver sem os homens
nunca sem os seus cantos;
aconteceu-me ser infiel
à minha bem amada
mas nunca ao canto que para ela cantei;
nunca também os cantos me enganaram.

Qualquer que fosse a língua
sempre compreendi os cantos.

Neste mundo,
de tudo o que pude beber e comer,
de todos os países por onde andei,
de tudo o que pude ver e ouvir,
de tudo o que pude tocar e compreender,
nada, nada
conseguiu fazer-me tão feliz como os cantos...

Nazim Hikmet

Tuesday 12 November 2019

MAIS TARDE SIM


Escreverei mais tarde
simples poemas claros
e falarei das aves
sem sofisma.

Escreverei mais tarde
de navios, lagunas,
das tuas roupas soltas
manchadas de luar...

Escreverei mais tarde
saudades da infância
e de pedras e rosas
sem dúbios sentidos.

Escreverei mais tarde
de um anel muito simples
e das tardes plenas
em que o amor se inscreve.

Mas agora deixai-me
chorar sobre estas lágrimas.

Egito Gonçalves

Saturday 9 November 2019

AS PESSOAS SENSÍVEIS


As pessoas sensíveis não são capazes
de matar galinhas
Porém são capazes
de comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
à roupa do seu corpo
aquela roupa
que depois da chuva secou sobre o corpo
porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
a roupa
que depois do suor não foi lavada
porque não tinham outra.

«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
assim nos foi imposto
E não:
«com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
porque eles sabem o que fazem

Sophia de Mello Breyner Andresen

Wednesday 6 November 2019

VOU A CANTAR...


Vou a cantar! Vou a cantar!

... mas cada vez mais próximo da Esquina
onde está talvez à minha espera...
a Garra.
Saída do outro lado do Ar...
a Garra.
Pendida da pele da sombra...
a Garra.
Implacável no silêncio curvo...
a Garra.

Mas talvez não seja ainda naquela esquina.
Talvez só na outra mais adiante
onde se vê uma ave a esvoaçar
na sombra do muro...

(O melhor é cantar! O melhor é cantar!)

José Gomes Ferreira

Sunday 3 November 2019

FICAM AS SOMBRAS...


Não. Não podeis levar tudo.
Depois do corpo,
e da alma,
e do nome,
e da terra da própria sepultura,
fica a memória de uma criatura
que viveu,
e sofreu,
e amou,
e nunca se dobrou
à dura tirania que a venceu.

Fica dentro de vós a consciência
de que ali onde o mundo é mais vazio
havia um homem.
E sabeis que se comem
os frutos acres da recordação...

Fantasmas invisíveis que atormentam
o sono leve dos que se alimentam
da liberdade de qualquer irmão.

Miguel Torga

Friday 1 November 2019

NINGUÉM


Andaimes
até ao décimo quinto andar
do moderno edifício de betão armado.

O ritmo
florestal dos ferros erguidos
arquitectonicamente no ar
e um transeunte curioso
que pergunta:
- Já caiu alguém dos andaimes?

O pausado ronronar
dos motores a óleos pesados
e a tranquila resposta do senhor empreiteiro:
- Ninguém. Só dois pretos.

José Craveirinha

Wednesday 30 October 2019

CARABINA Nº 5767


Esta é a crónica de Félix Faustino Ferrán
e da ficha da sua carabina de miliciano da Pátria.
Féliz Faustino Ferrán, na fria noite de 19 de Janeiro,
junto às trincheiras da Revolução,
num lugar qualquer de Cuba,
recitou-me o breve e enorme poema
da sua carabina nº 5767.

Eu digo que é o mais luminoso, o mais profundo,
o mais musical e cintilante de todos os poemas
da Revolução!

Disse-o com a voz grave e quente de negro cubano,
com o seu sorriso claro e grande de negro cubano,
e era a Pátria inteira que falava,
com as palavras simples como flores de aço
do miliciano 1061.

Esqueci-me da origem, da primeira palavra.
Oiço a sua voz e vejo a mão
fechar-se com ternura de diamante invencível
no cano da sua carabina.
Surpreendido, escuto:

António o cano,
Viviana o guarda-mão,
Caruca o manipulador,
Filiberto o carregador,
Irene o tampão de gases,
Lucía o atirador
Fabián o travão,
e a culatra sou eu.

Em cada peça da carabina um filho,
em cada peça uma flor do seu sangue,
uma face de amor com fúria defendida.
Por eles, para eles!
Por todos! Para todos aqueles cujos nomes
estão em cada peça das carabinas milicianas,
a voz rouca do miliciano Félix Faustino Ferrán,
negro cubano, operário da Pátria e da sua glória,
na fria noite inolvidável do 19 de Janeiro,
junto às trincheiras da Revolução
onde eu lhe lia os poemas deste livro,
mostrou-me o coração da poesia.

Félix Pita Rodriguez
(In Poesia Cubana da Revolução)

Sunday 27 October 2019

REPORTAGEM ESPECIAL PELO DIA INTERNACIONAL DA MULHER


Uma mulher se inflama.
Vinte anos e um corpo cheio de fogo.
Seu ventre palpita
seus peitos brancos erguidos e abrasados.
Contorcem-se as ancas
e fervem as coxas.
Anh Dai
tem o corpo aceso pela chama.
Mas não é o amor.
É o napalm.

Minerva Salado
(In Poesia Cubana da Revolução)

Thursday 24 October 2019

NENHUMA PALAVRA TE FAZ JUSTIÇA


Tremor mais forte que a cópula,
companhia mais intensa do que a solidão,
conversa mais rica que o silêncio,
realidade mais estranha que o sonho,
verdade do dia e da noite,
céu colorido de bandeiras,
canção que não se detém,
razão de estar aqui:
Já vês que nenhuma palavra te faz justiça,
Revolução.

Roberto Fernández Retamar
(In Poesia Cubana da Revolução)

Monday 21 October 2019

VIAGEM ÀS TRINCHEIRAS


I
Os milicianos do meu povo mortos pelo invasor
eram sapateiros,
pedreiros,
músicos e cortadores de cana. Suas mães
eram as minhas mães.
O ódio
os assassinou.
Sofro,
olho para o horizonte onde os bárbaros
com canhões e aviões e bombas
se aprontam.

Que morra
um milhão de camponeses cubanos
não lhes importa. São,
como os japoneses de Hiroshima,
inferiores.
Agora comem, cantam,
esperam.

Os generais não escutam as águas.
Nunca assobiam aos simples pardais.

II
Sejas quem fores,
estejas onde estiveres,
não traias
este nobre jovem na praia
esperando o invasor.
Ele é nobre, é puro.
Não te sujes, não emporques
a água de todos. Não intrigues,
não corrompas, deixa a tua miserável
ambição, que sempre surge
onde o homem está,
e olha para ele:
é nobre, é puro.
Pronto a oferecer a sua vida jovem
por ti, por mim, por
todos. Sê recto e generoso. Sê para ele
como ele é para todos: fiel.

Samuel Feijóo
(In Poesia Cubana da Revolução)

Friday 18 October 2019

ACONTECE QUE NÓS


Acontece que nós
acontece que nós habitamos este mundo e esta ilha
que recomendamos como boa
acontece que meus pais e avós e todos os meus antepassados
que pisaram esta terra
acontece que chegámos apenas há pouco até este ponto
e que temos de continuar
acontece que todo o mundo nos conhece pelo nome desta ilha
e pelos discursos e frases e os mais compridos títulos
acontece que somos responsáveis pelos crimes mais justos
e as mais belas mentiras
e acontece que nos custou muito gurdar o que fizémos

a ver se um dia destes nos deixam em paz.


Víctor Casaus
(In Poesia Cubana da Revolução)

Tuesday 15 October 2019

POR ESTA LIBERDADE


Por esta liberdade de cantar à chuva
temos que dar tudo

Por esta liberdade de estarmos estreitamente unidos
ao firme e terno cerne do povo
temos que dar tudo

Por esta liberdade de girassol aberto na aurora das fábricas
acesas e escolas iluminadas
e de terra que range e criança que acorda
temos que dar tudo

Não há alternativa senão a liberdade
Não há outro caminho senão a liberdade
Não há outra pátria senão a liberdade
Não haverá poema sem a violenta música da liberdade

Por esta liberdade que é o terror
dos que sempre a violaram
em nome de faustosas misérias
Por esta liberdade que é a noite dos opressores
e a definitiva aurora de todo o povo já invencível
Por esta liberdade que ilumina as pupilas afundadas
os pés descalços
os telhados remendados
e os olhos das crianças que rebolam na poeira
Por esta liberdade que é o reino da juventude.
Por esta liberdade
bela como a vida
temos que dar tudo

se for necessário
até a própria sombra
e nunca será bastante.

Fayad Jamis
(In Poesia Cubana da Revolução)

Saturday 12 October 2019

CHE


Che, tu conheces tudo,
as voltas da Sierra,
a asma na erva fria,
a tribuna,
as ondas da noite,
até como se fazem
os frutos e os bois se jungem.

Não é que eu queira dar-te
caneta por pistola
mas o poeta és tu.

Miguel Barnet
(In Poesia Cubana da Revolução)

Wednesday 9 October 2019

TRAGÉDIA



Foi para a escola e aprendeu a ler
e as quatro operações, de cor e salteado.
Era um menino triste:
nunca brincou no largo.
Depois, foi para a loja e pôs a uso
aquilo que aprendeu
- vagaroso e sério,
sem um engano,
sem um sorriso.
Depois, o pai morreu
como estava previsto.
E o Senhor António
(tão novinho e já era «o senhor António»!...)
ficou dono da loja e chefe de família...
Envelheceu, casou, teve meninos,
tudo como quem soma ou faz multiplicação!...
E quando o mais velhinho
já sabia contar, ler, escrever,
o Senhor António deu balanço à vida:
tinha setenta anos, um nome respeitado...
- que mais podia querer?
Por isso,
num meio-dia de Verão,
sentiu-se mal.
Decentemente abriu os braços
e disse: - Vou morrer.
E morreu!, morreu de congestão!...

Manuel da Fonseca

Sunday 6 October 2019

ATÉ AMANHÃ, CAMARADAS


Assim passei o meu dia de ontem, dia de reflexão:
De manhã fui ao café, tomei o pequeno almoço, li jornais, reflecti...
Depois, dei uma volta pela blogosfera, postei uns posts, visitei os meus blogs preferidos, em alguns dos quais deixei comentários. Almocei. Reflecti...

A seguir, ouvi música. Música recorrente: o Adriano («Gente de Aqui e de Agora» e «Que Nunca Mais»); e «Trovas do Tempo que Passa - Samuel Canta Adriano» - cd que me foi oferecido aqui há uns meses e que me confirma inequivocamente que Adriano «foi um dos homens que fizeram cantar» bem. Reflecti...
Seguiram-se alguns daqueles «clássicos» a que recorro com frequência - por isso lhes chamo recorrentes...: Beethoven (a recorrentíssima Quinta); Mahler (a Nº 2, a da Ressurreição, que Jorge de Sena ouviu assim:
«Ante este ímpeto de sons e de silêncio
Ante tais gritos de furiosa paz
Ante um furor tamanho de existir-se eterno
Há portas no infinito que resistam?»
Não há: reflecti.

E por aqui andei, saltitando recorrentemente do Jorge de Sena para o Armindo, deste para o Zé Gomes... - sempre reflectindo...

Á noite fui ao futebol - pela primeira vez, este ano.
Ver a Luz a (quase) encher é um espectáculo. Ver o Benfica ganhar é O espectáculo. Ouvir os cânticos e os gritos da multidão - «Assim se vê a força do SLB!» - dá para... reflectir...

De regresso a casa - obviamente, em estado de reflexão... - vi dois filmes, tirados à sorte do meio de uma dezena de recorrentes...: «O Mundo a seus pés» que me proporcionou demorada reflexão...; e o «Cinema Paraíso», que cumpriu o seu destino de me fazer chorar - lágrimas boas: de ternura, de tristeza, de alegria, de amargura, de felicidade... - e reflecti.

............................................................


Agora, vou votar.
Com a convicção profunda de que o meu voto será um dos que contribuirão para que a CDU atinja o seu objectivo principal: uma votação maior do que a obtida nas anteriores legislativas.
Com a certeza de que - independentemente de esse objectivo ser ou não alcançado - amanhã, segunda-feira, A LUTA CONTINUA.

Até amanhã, camaradas.

Por à(s) 27.9.09

Thursday 3 October 2019

O vento na Ilha


O vento é um cavalo:
ouve como ele corre
pelo mar, pelo céu.

Quer levar-me: escuta
como percorre o mundo
para levar-me para longe.

Esconde-me em teus braços
por esta noite apenas,
enquanto a chuva abre
contra o mar e contra a terra
a sua boca inumerável.

Escuta como o vento
me chama galopando
para levar-me para longe.

Com tua fronte na minha
e na minha a tua boca,
atados os nossos corpos
ao amor que nos abrasa,
deixa que o vento passe
sem que possa levar-me.

Deixa que o vento corra
coroado de espuma,
que me chame e procure
galopando na sombra,
enquanto eu, submerso
sob os teus grandes olhos,
por esta noite apenas
descansarei, meu amor.

Pablo Neruda
in "Os versos do Capitão"

Tuesday 1 October 2019

O Oleiro


Há em todo o teu corpo
uma taça ou doçura a mim destinada.

Quando levanto a mão
encontro em cada lugar uma pomba
que andava à minha procura, como
se te houvessem, meu amor, feito de argila
para as minhas mãos de oleiro.

Os teus joelhos, os teus seios,
a tua cintura,
faltam em mim como no côncavo
duma terra sedenta
a que retiraram
uma forma,
e, juntos,

estamos completos como um só rio,
como um só areal.

Pablo Neruda,
in "Os Versos do Capitão"

Monday 30 September 2019

EU NÃO ME CALO


Perdoe o cidadão esperançado
minha lembrança de ações miseráveis,
que levantam os homens do passado.

Eu não preconizo um amor inexorável.

E não me importa pessoa nem cão:
só o povo me é considerável:
só a pátria me condiciona.

Povo e pátria manejam meu cuidado:
Pátria e Povo destinam meus deveres
e se logram matar o revoltado
pelo povo, é minha Pátria quem morre.

É esse meu temor e minha agonia.

Por isso no combate ninguém espere
que fique sem voz minha poesia.

Pablo Neruda

Friday 27 September 2019

Em memória de José Caravela e António Maria Casquinha

Em memória de José Caravela e António Maria Casquinha, mortos em Montemor-o-Novo pela GNR, há 40 anos!

1
Aqui
nesta planície de sol suado
dois homens desafiaram a morte, cara a cara,
em defesa do seu gado
de cornos e tetas.


Aqui
onde agora vejo crescer uma seara
de espigas pretas.

2
Quando os dois camponeses desceram às covas,
ante os punhos cerrados de todos nós,
chorei!

Sim, chorei
sentindo nos olhos a voz
do que há de mais profundo
nas raízes dos homens e das flores
a correrem-me em lágrimas na face.

Chorei pelos mortos e pelos matadores
- almas de frio fundo.

Digam-me lá:
para que serviria ser poeta
se não chorasse
publicamente
diante do mundo?

José Gomes Ferreira

Tuesday 24 September 2019

TALVEZ


Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,


E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...

Pablo Neruda

Saturday 21 September 2019

Para não deixar de amar-te nunca


Saberás que não te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem a sua metade de frio.

Amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.

O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

Pablo Neruda

Wednesday 18 September 2019

Já és minha


Já és minha. Repousa com teu sonho em meu sonho.
Amor, dor, trabalhos, devem dormir agora.
Gira a noite sobre suas invisíveis rodas
e junto a mim és pura como o âmbar dormindo.
Nenhuma mais, amor, dormirá com meus sonhos.
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo.
Nenhuma viajará pela sombra comigo,
só tu, sempre-viva, sempre sol, sempre lua.
Já tuas mãos abriram os punhos delicados
e deixaram cair suaves sinais sem rumo
teus olhos se fecharam como duas asas cinzas,
enquanto eu sigo a água que levas e me leva:
a noite, o mundo, o vento enovelam seu destino,
e já não sou sem ti apenas teu sonho.


Pablo Neruda

Sunday 15 September 2019

MULHERES


Elas sorriem quando querem gritar.
Elas cantam quando querem chorar.
Elas choram quando estão felizes.
E riem quando estão nervosas. 


Elas brigam por aquilo que acreditam.
Elas levantam-se para injustiça.
Elas não levam "não" como resposta quando
acreditam que existe melhor solução.

Elas andam sem novos sapatos para
suas crianças poder tê-los.
Elas vão ao medico com uma amiga assustada.
Elas amam incondicionalmente.

Elas choram quando suas crianças adoecem
e se alegram quando suas crianças ganham prémios.
Elas ficam contentes quando ouvem sobre
um aniversario ou um novo casamento.


Pablo Neruda

Thursday 12 September 2019

O Mar



Um ser único, nem sangue.
Uma só caricia, morte ou rosa.
Vem o mar e junta as nossas vidas
e sozinho investe e reparte-se e canta
na noite no dia no homem na criatura.
A essência; fogo e frio; movimento.


Pablo Neruda

Wednesday 11 September 2019

Homenagem ao povo do Chile


Foram não sei quantos mil
operários trabalhadores
mulheres ardinas pedreiros
jovens poetas cantores
camponeses e mineiros
foram não sei quantos mil
que tombaram pelo Chile
morrendo de corpo inteiro.

Nas suas almas abertas
traziam o sol da esperança
e nas duas mãos desertas
uma pátria ainda criança.

Gritavam Neruda Allende
davam vivas ao Partido
que é a chama que se acende
no povo jamais vencido.
- o povo nunca se rende
mesmo quando morre unido.

Foram não sei quantos mil
operários trabalhadores
mulheres ardinas pedreiros
jovens poetas cantores
camponeses e mineiros
foram não sei quantos mil
que tombaram pelo Chile
morrendo de corpo inteiro.

Alguns traziam no rosto
um rictus de fogo e dor
fogo vivo fogo posto
pelas mãos do opressor.
Outros traziam os olhos
rasos de silêncio e água
maré-viva de quem passa
uma vida à beira-mágoa.

Foram não sei quantos mil
operários trabalhadores
mulheres ardinas pedreiros
jovens poetas cantores
camponeses e mineiros
foram não sei quantos mil
que tombaram pelo Chile
morrendo de corpo inteiro.

Mas não termina em si próprio
quem morre de pé. Vencido
é aquele que tentar
separar o povo unido.
Por isso os que ontem caíram
levantam de novo a voz.
Mortos são os que traíram
e vivos ficamos nós.

Foram não sei quantos mil
operários trabalhadores
mulheres ardinas pedreiros
jovens poetas cantores
camponeses e mineiros
foram não sei quantos mil
que nasceram para o Chile
morrendo de corpo inteiro.

José Carlos Ary dos Santos

Monday 9 September 2019

Poema 14


Brincas todos os dias com a luz do Universo.
Subtil visitadora, chegas na flor e na água.
És mais do que a pequena cabeça branca que aperto
como um cacho entre as mãos todos os dias.


Com ninguém te pareces desde que eu te amo.
Deixa-me estender-te entre grinaldas amarelas.
Quem escreve o teu nome com letras de fumo
entre as estrelas do sul?
Ah, deixa-me lembrar como eras então,
quando ainda não existias.

Subitamente o vento uiva e bate à minha janela fechada.
O céu é uma rede coalhada de peixes sombrios.
Aqui vêm soprar todos os ventos, todos.
Aqui despe-se a chuva.

Passam fugindo os pássaros.
O vento. O vento.
Eu só posso lutar contra a força dos homens.
O temporal amontoa folhas escuras
e solta todos os barcos que esta noite amarraram ao céu.

Tu estás aqui. Ah tu não foges.
Tu responder-me-ás até ao último grito.
Enrola-te a meu lado como se tivesses medo.
Porém mais que uma vez correu uma sombra estranha
pelos teus olhos.

Agora, agora também pequena, trazes-me madressilva,
e tens até os seios perfumados.
Enquanto o vento triste galopa matando borboletas
eu amo-te, e a minha alegria morde a tua boca de ameixa.

Quanto te haverá doído acostumares-te a mim,
à minha alma selvagem e só,
ao meu nome que todos escorraçam.
Vimos arder tantas vezes a estrela d'alva beijando-nos os olhos
e sobre as nossas cabeças destorcem-se os crepúsculos
em leques rodopiantes.
As minhas palavras choveram sobre ti acariciando-te.
Amei desde há que tempo o teu corpo de nácar moreno.
Creio-te mesmo dona do Universo.
Vou trazer-te das montanhas flores alegres, "copihues",
avelãs escuras, e cestos silvestres de beijos.

Quero fazer contigo
o que a primavera faz com as cerejeiras.

Pablo Neruda
20 Poemas de Amor e uma Canção Desesperada.

Friday 6 September 2019

AMOR


Mulher, teria sido teu filho, para beber-te
o leite dos seios como de um manancial,
para olhar-te e sentir-te a meu lado e ter-te
no riso de ouro e na voz de cristal.


Para sentir-te nas veias como Deus num rio
e adorar-te nos ossos tristes de pó e cal,
para que sem esforço teu ser pelo meu passasse
e saísse na estrofe - limpo de todo o mal -.

Como saberia amar-te, mulher, como saberia
amar-te, amar-te como nunca soube ninguém!
Morrer e todavia
amar-te mais.
E todavia
amar-te mais
e mais.

Pablo Neruda

Tuesday 3 September 2019

Se me esqueceres


Quero que saibas
uma coisa.

Sabes como é:
se olho
a lua de cristal, o ramo vermelho
do lento outono à minha janela,
se toco
junto do lume
a impalpável cinza
ou o enrugado corpo da lenha,
tudo me leva para ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz, metais,
fosse pequenos barcos que navegam
até às tuas ilhas que me esperam.

Mas agora,
se pouco a pouco me deixas de amar
deixarei de te amar pouco a pouco.

Se de súbito
me esqueceres
não me procures,
porque já te terei esquecido.

Se julgas que é vasto e louco
o vento de bandeiras
que passa pela minha vida
e te resolves
a deixar-me na margem
do coração em que tenho raízes,
pensa
que nesse dia,
a essa hora
levantarei os braços
e as minhas raízes sairão
em busca de outra terra.

Porém
se todos os dias,
a toda a hora,
te sentes destinada a mim
com doçura implacável,
se todos os dias uma flor
uma flor te sobe aos lábios à minha procura,
ai meu amor, ai minha amada,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga nem se esquece,
o meu amor alimenta-se do teu amor,
e enquanto viveres estará nos teus braços
sem sair dos meus.

Pablo Neruda,
in "Poemas de Amor de Pablo Neruda"

Sunday 1 September 2019

Para o meu coração...


Para o meu coração basta o teu peito,
para a tua liberdade as minhas asas.
Da minha boca chegará até ao céu
o que dormia sobre a tua alma.


És em ti a ilusão de cada dia.
Como o orvalho tu chegas às corolas.
Minas o horizonte com a tua ausência.
Eternamente em fuga como a onda.

Eu disse que no vento ias cantando
como os pinheiros e como os mastros.
Como eles tu és alta e taciturna.
E ficas logo triste, como uma viagem.

Acolhedora como um velho caminho.
Povoam-te ecos e vozes nostálgicas.
Eu acordei e às vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam na tua alma.

Pablo Neruda,
in "Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada"

Friday 30 August 2019

**


Ausência, tua presença verdadeira
e por ela me continuo.
Recolho a vida inteira
como quem se encosta a um muro

que do outro lado
é luz, flores e harmonia,
e cordas plangentes dum fado
que se esvai em nostalgia.

Desordenada e lírica
a voz magoa numa toada triste
como o fruto procede da flor.

E dessa rosa empírica
o sonho de seres minha subsiste
em pétalas de amor.

Carlos Carranca

Thursday 29 August 2019

**


Eu no meio dos filhos
estendo-lhes os braços
e não os abraço.

Eu no meio dos netos
estendo-lhes os braços
e não os abraço.

Eu no meio da vida
estendo-lhe os braços
e não a abraço.

Eu no meio de mim
estendo-me os braços
e não me abraço.

Eu no meio do nada
estendo-lhe os braços
e não o abraço.

Eu no meio
estendendo os braços.

Carlos Carranca

Tuesday 27 August 2019

sem passado se retorna ao passado


eis o ciclo venenoso da serpente que não matámos no ovo
as falsas bandeiras soprando ódio pelo túnel de vento
construído com os tijolos das nossas escolas e os salários dos professores contratados
os medos alastrando como uma doença pela pele afora contaminada pelo ar infecto dos esgotos construídos com o cimento dos nossos hospitais
a falta de tudo sentida assim no âmago de quem nunca teve nada
e essa voz que exige o fim da democracia mascarada de fim da corrupção
que anda pelas ruas de mão em mão sem morada fiscal
mas sempre domiciliada no paraíso offshore do aldrabão
eis um veneno que se injecta nas veias da ignorância
uma passadeira vermelha caminhada por ilusão
um livro de estante dos destaques do hipermercado
um imposto demasiado caro para um serviço que só apetece pedir o livro de reclamações
uma escola fechada um hospital com direito de admissão
um teatro igreja universal e um actor de esmola na mão
uma ciência terraplanada e um doutor de bolsa não será possível agradecemos a sua compreensão
um polícia raivoso na fábrica ocupada e em auto-gestão e detectives brandos a ajudar a esconder as contas do patrão
uma mão na massa enquanto milhões amassam o pão
é nesse pântano que se torna ténue sem que nos apercebamos a luz
e ao contrário do que se passa com as igrejas
os museus iluminam bem mais quando não ardem.

Miguel Tiago

Saturday 24 August 2019

ILHA


Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente


promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente


Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro


ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias


David Mourão-Ferreira

Thursday 22 August 2019

sem título


dói-me o pulmão esquerdo do planeta
e o amazonas.

o fascismo mata. mais que monóxido de carbono.

Miguel Tiago

Wednesday 21 August 2019

Não passam mais


Em nome dos nossos braços
em nome das nossas mãos
em nome de quantos passos
deram os nossos irmãos.
Em nome das ferramentas
que nos magoaram os dedos
das torturas das tormentas
das sevícias dos degredos.
Em nome daquele nome
que herdámos dos nossos pais
em nome da sua fome
dizemos: não passam mais!


E em nome dos milénios
de prisão adicionada
em nome de tantos génios
com a voz amordaçada
em nome dos camponeses
com a terra confiscada
em nome dos Portugueses
com a carne estilhaçada
em nome daqueles nomes
escarrados nos tribunais
dizemos que há outros nomes
que não passam nunca mais!

Em nome do que nós temos
em nome do que nós fomos
revolução que fizemos
democracia que somos
em nome da unidade
linda flor da classe operária
em nome da liberdade
flor imensa e proletária
em nome desta vontade
de sermos todos iguais
vamos dizer a verdade
dizendo: não passam mais!

Em nome de quantos corpos
nossos filhos foram feitos.
Em nome de quantos mortos
vivem nos nossos direitos.
Em nome de quantos vivos
dão mais vida à nossa voz
não mais seremos cativos:
o trabalho somos nós.
Por isso tornos enxadas
canetas frezas dedais
são as nossas barricadas
que dizem: não passam mais!

E em nome das conquistas
vindas dos ventos de Abril
reforma agrária controlo
operário no meio fabril
empresas que são do estado
porque o seu dono é o povo
em nome de lado a lado
termos feito um país novo.
Em nome da nossa frente
e dos nossos ideais
diante de toda a gente
dizemos: não passam mais!

Em nome do que passámos
não deixaremos passar
o patrão que ultrapassámos
e que nos quer trespassar.
E por onde a gente passa
nós passamos a palavra:
Cada rua cada praça
é o chão que o povo lavra.
Passaremos adiante
com passo firme e seguro.
O passado é já bastante
vamos passar ao futuro.

Ary dos Santos

Sunday 18 August 2019

Alma ausente


No te conoce el toro ni la higuera,
ni caballos ni hormigas de tu casa.
No te conoce el niño ni la tarde
porque te has muerto para siempre.


No te conoce el lomo de la piedra,
ni el raso negro donde te destrozas.
No te conoce tu recuerdo mudo
porque te has muerto para siempre.

El otoño vendrá con caracolas,
uva de niebla y montes agrupados,
pero nadie querrá mirar tus ojos
porque te has muerto para siempre.

Porque te has muerto para siempre,
como todos los muertos de la Tierra,
como todos los muertos que se olvidan
en un montón de perros apagados.

No te conoce nadie. No. Pero yo te canto.
Yo canto para luego tu perfil y tu gracia.
La madurez insigne de tu conocimiento.
Tu apetencia de muerte y el gusto de su boca.
La tristeza que tuvo tu valiente alegría.

Tardará mucho tiempo en nacer, si es que nace,
un andaluz tan claro, tan rico de aventura.
Yo canto su elegancia con palabras que gimen
y recuerdo una brisa triste por los olivos.

Federico Garcia Lorca

(83 anos do seu assassinato)

Thursday 15 August 2019

AMOR VERDADEIRO


É assim que te quero, amor,
assim, amor, é que eu gosto de ti,
tal como te vestes
e como arranjas
os cabelos e como
a tua boca sorri,
ágil como a água
da fonte sobre as pedras puras,
é assim que te quero, amada,
Ao pão não peço que me ensine,
mas antes que não me falte
em cada dia que passa.
Da luz nada sei, nem donde
vem nem para onde vai,
apenas quero que a luz alumie,
e também não peço à noite explicações,
espero-a e envolve-me,
e assim tu pão e luz
e sombra és.
Chegastes à minha vida
com o que trazias,
feita
de luz e pão e sombra, eu te esperava,
e é assim que preciso de ti,
assim que te amo,
e os que amanhã quiserem ouvir
o que não lhes direi, que o leiam aqui
e retrocedam hoje porque é cedo
para tais argumentos.
Amanhã dar-lhes-emos apenas
uma folha da árvore do nosso amor, uma folha
que há de cair sobre a terra
como se a tivessem produzido os nosso lábios,
como um beijo caído
das nossas alturas invencíveis
para mostrar o fogo e a ternura
de um amor verdadeiro.


Pablo Neruda

Monday 12 August 2019

Sempre



Ao contrário de ti
não tenho ciúmes.

Vem com um homem
às costas,
vem com cem homens nos teus cabelos,
vem com mil homens entre os seios e os pés,
vem como um rio
cheio de afogados
que encontra o mar furioso,
a espuma eterna, o tempo.

Trá-los todos
até onde te espero:
estaremos sempre sozinhos,
estaremos sempre tu e eu
sozinhos na terra
para começar a vida.

Pablo Neruda

Friday 9 August 2019

Corpo de Mulher...


Corpo de mulher, brancas colinas, coxas brancas,
pareces-te com o mundo na tua atitude de entrega.
O meu corpo de lavrador selvagem escava em ti
e faz saltar o filho do mais fundo da terra.


Fui só como um túnel. De mim fugiam os pássaros,
e em mim a noite forçava a sua invasão poderosa.
Para sobreviver forjei-te como uma arma,
como uma flecha no meu arco, como uma pedra na minha funda.

Mas desce a hora da vingança, e eu amo-te.
Corpo de pele, de musgo, de leite ávido e firme.
Ah os copos do peito! Ah os olhos de ausência!
Ah as rosas do púbis! Ah a tua voz lenta e triste!

Corpo de mulher minha, persistirei na tua graça.
Minha sede, minha ânsia sem limite, meu caminho indeciso!
Escuros regos onde a sede eterna continua,
e a fadiga continua, e a dor infinita.

Pablo Neruda,
in "Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada"

Tuesday 6 August 2019

O Teu Riso


Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas
não me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a flor de espiga que desfias,
a água que de súbito
jorra na tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
por vezes com os olhos
cansados de terem visto
a terra que não muda,
mas quando o teu riso entra
sobe ao céu à minha procura
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, na hora
mais obscura desfia
o teu riso, e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

Perto do mar no outono,
o teu riso deve erguer
a sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero o teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
curvas da ilha,
ri-te deste rapaz
desajeitado que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando os meus passos se forem,
quando os meus passos voltarem,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas o teu riso nunca
porque sem ele morreria.

Pablo Neruda,
in "Poemas de Amor"

Saturday 3 August 2019

O Pai


Terra de semente inculta e bravia,
terra onde não há esteiros ou caminhos,
sob o sol minha vida se alonga e estremece.
Pai, nada podem teus olhos doces,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as faces.
Escureceu-me a vista o mal de amor
e na doce fonte do meu sonho
outra fonte tremida se reflecte.
Depois... Pergunta a Deus porque me deram
o que me deram e porque depois
conheci a solidão do céu e da terra.
Olha, minha juventude foi um puro
botão que ficou por rebentar e perde
a sua doçura de seiva e de sangue.
O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de a beijar... E o outono.
Pai, nada podem teus olhos doces.
Escutarei de noite as tuas palavras:
... menino, meu menino...
E na noite imensa
com as feridas de ambos seguirei.


Pablo Neruda

Thursday 1 August 2019

Amo-te sem saber como



Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou seta de cravos que propagam o fogo:
amo-te como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.


Amo-te como a planta que não floriu e tem
dentro de si, escondida, a luz das flores,
e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo
o denso aroma que subiu da terra.

Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde,
amo-te directamente sem problemas nem orgulho:
amo-te assim porque não sei amar de outra maneira,

a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,
tão perto que a tua mão no meu peito é minha,
tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono.

Pablo Neruda,
in "Cem Sonetos de Amor"

Tuesday 30 July 2019

**


Tudo o que é ingénuo, simples e espontâneo
se entrega por inteiro à terra prometida,
como verso puro, magnânimo,
onde se enlaça apaixonada a vida

e onde a morte não liberta
os seres do corpo duro da lembrança.
Onde tudo é ingénuo, há esperança
no imaginário oculto que desperta.

E as almas são a porta aberta
ao fundo princípio da incerteza
do rasto luminoso da beleza

que nos guia ao lugar fecundo
onde cada ser é o mundo
e sua promessa de grandeza.

Carlos Carranca

Saturday 27 July 2019

Memória Ausente


O que me aflige é esta inconsciência em que vivo de mim próprio,
esta infinita distância em que me acho e a que chamo eu.
Eu, memória de mim que não vivi.
Eu, eternidade sem tempo.
Eu, filho de mim próprio de tanto imaginar.
Eu, vontade de ser identidade que se assombra.
Eu, fealdade e beleza.
Eu, filho pródigo do Homem.


Carlos Carranca

Wednesday 24 July 2019

MAR


É deste mar iniciático e limpo
que alcanço outra lonjura.
Acho - me nas ondas onde brinco
infante, no dorso da aventura.


Sempre fui assim
dum tempo inominado,
sem princípio nem fim,
nem futuro, nem passado.

Só meu, como um brinquedo
que se guarda e esconde
p'ra que ninguém o veja,

dentro de mim, o medo.
Esse lugar onde
não há uma força maior que o proteja.

Carlos Carranca

Sunday 21 July 2019

DEUS NO SEU LUGAR


Eu moro num lugar
remoto, primitivo,
onde algumas casas
lembram rústicos palácios
e outras casebres roídos pela fome.


É Deus o ponto de partida,
o cenário, a voz, a própria vida,
a sua não - existência consentida
apregoando um cepticismo inquieto,
cansado de dogmas e de ritos.

Inútil e perfeito
vive na ausência
de ser único,
colectivo
testemunho da fé elementar.

Carlos Carranca

Thursday 18 July 2019

**


Dormi num duplo sonho
que me observa e se dilata,
tomando po inteiro esse cenário
fantasioso e consentido

de palavras segredadas ao ouvido
de modo vário,
onde a alma se arrebata
ante um céu brando e medonho.

Mas nada dessa cor
é uma cantata
de luz, uma oração.

Onde sangrei eu o coração,
nessa bravata
de redobrado amor?

Carlos Carranca

Monday 15 July 2019

**


Em mim afirmação ou negação vão juntas.
Sou quem se nega ou se confirma
em si mesmo juiz e condenado,
creio no absurdo,
no contrário profético
no verso meticuloso e calculado.


O pensamento ocorre e não discorre
e se expande e derrama pelo mundo.
Por isso tudo existe
quando somos e transcendemos,
espaço negro,
singularidade nua.

Carlos Carranca

Friday 12 July 2019

EPIGRAMA

O país tem de ter juízo
poupar mais, menos gastar.
Aí está o que é preciso.
Por isso os salários devem baixar.

A economia manda aviso.
Emprego tem de aumentar.
Aí está o que é preciso.
Por isso os salários devem baixar.

A inflação é prejuízo.
Há que mandá-la ao ar.
Aí está o que é preciso.
Por isso os salários devem baixar.

«Dói-me a queixada direita,
doutor, o que faço a isto?
(diz Cavaco), o que receita?
- «Baixar os salários, está visto»

Mário Castrim

Tuesday 9 July 2019

MANIFESTO


Quem nos vem salvar dos livros gigantes que emolduram as janelas dos quartos dos hospitais?
Quem nos vem salvar da mentira?
Quem nos vem salvar do falso?
Quem nos vem salvar do mal?

Cumpramos os verdadeiros.

Que só nos resta o papel de parede
a dizer, façamos por merecer
esses amigos onde o tempo escreve.
Cumpramos a liberdade que nos resta.

Faz por não esquecer!

Carlos Carranca

Saturday 6 July 2019

**


Quando chegar o dia de assombrar a casa
dos versos que deixei por escrever,
todos dirão algo de belo e inconsistente :
contarão estórias aos filhos e aos netos
a propósito duma árvore, duma erva de cheiro,
duma flor - aquela! Da mansidão do meu pinheiro gigante, das três oliveiras irmãs,
do gato vadio que me pulava para o colo
e se sentava entre os livros e sussurrava poemas
e eu a tentar decifrá-los sem que ninguém suspeitasse.
E falarão da tília que cinge de paz e de mel
os odores do mês de de Junho.
E desta magia do sol filtrado
pelos bagos negros das uvas pintando na latada
onde crescem como testículos, os kiwis.
E talvez de poesia e sua natureza.


Carlos Carranca

Wednesday 3 July 2019

A UM LIMOEIRO


Na casa há um limoeiro sensual.
Esfrega-se na parede, de tetas rijas, luminosas,
entre as cores subtis dumas orquídeas,
e a presença solitária dumas rosas.

É um caso de sexo vegetal
onde cumpre original o seu destino,
de parecer um animal
em êxtase e ser também citrino.

Carlos Carranca

Monday 1 July 2019

A noite gosta de mim


Sei que estás ao pé de mim
Quando o tempo se repete
E o dia chega ao fim
Sem que a noite se inquiete

Nos instantes repetidos
Em que escuto o teu cansaço
Sou igual aos meus sentidos
E o Tempo igual ao Espaço

Mas se o tempo é infinito
Quando o dia chega ao fim
Fecho os olhos e repito:
A noite gosta de mim

E peço ao Tempo e ao Mundo
Que me seja permitido
Viver um breve segundo
Que tu já tenhas vivido

Mas se o tempo é infinito
Quando o dia chega ao fim
Fecho os olhos e repito:
A noite gosta de mim.

Tiago Torres da Silva

Sunday 30 June 2019

A noite na Ilha


Dormi contigo toda a noite
junto ao mar, na ilha.
Eras doce e selvagem entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.


Os nossos sonos uniram-se
talvez muito tarde
no alto ou no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento agita,
em baixo como vermelhas raízes que se tocam.

O teu sono separou-se
talvez do meu
e andava à minha procura
pelo mar escuro
como dantes,
quando ainda não existias,
quando sem te avistar
naveguei a teu lado
e os teus olhos buscavam
o que agora
— pão, vinho, amor e cólera —
te dou às mãos cheias,
porque tu és a taça
que esperava os dons da minha vida.

Dormi contigo
toda a noite enquanto
a terra escura gira
com os vivos e os mortos,
e ao acordar de repente
no meio da sombra
o meu braço cingia a tua cintura.
Nem a noite nem o sono
puderam separar-nos.

Dormi contigo
e, ao acordar, tua boca,
saída do teu sono,
trouxe-me o sabor da terra,
da água do mar, das algas,
do âmago da tua vida,
e recebi teu beijo,
molhado pela aurora,
como se me viesse
do mar que nos cerca.

Pablo Neruda

Thursday 27 June 2019

Não te quero senão porque te quero



Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.


Tal vez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.

Pablo Neruda

Monday 24 June 2019



Se não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.
Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso...
Mas sê o melhor no que quer que sejas.


Pablo Neruda

Friday 21 June 2019

Amo o pedaço de terra que tu és


Amo o pedaço de terra que tu és,
porque das campinas planetárias
outra estrela não tenho. Tu repetes
a multiplicação do universo.
Teus amplos olhos são a luz que tenho
as constelações derrotadas,
tua pele palpita como os caminhos
que percorre na chuva o meteoro.
De tanta lua foram para mim teus quadris,
de todo o sol tua boca profunda e sua delícia,
de tanta luz ardente como mel na sombra
teu coração queimado por longos raios rubros,
e assim percorro o fogo de tua forma beijando-te,
pequena e planetária, pomba e geografia.


Pablo Neruda

Tuesday 18 June 2019

Liberdade


Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente.
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.
- Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
- Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.

Miguel Torga




Saturday 15 June 2019

Para não deixar de amar-te nunca



Saberás que não te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem a sua metade de frio.


Amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.

O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

Pablo Neruda

Wednesday 12 June 2019

Segredo


Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
*
nem que corro
os cortinados
para uma sombra mais espessa
*
deixa que feche o anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas pernas
e a sombra do meu poço
*
Não contes do meu
vestido
nem da roca de fiar
*
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar
*

Maria Teresa Horta

Sunday 9 June 2019

Poema da terra adubada



Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.
Por detrás das árvores escondem-se os soldados
com granadas de mão.

As árvores são belas com os troncos dourados.
São boas e largas para esconder soldados.

Não é o vento que rumoreja nas folhas,
não é o vento, não.
São os corpos dos soldados rastejando no chão.

O brilho súbito não é do limbo das folhas verdes reluzentes.
É das lâminas das facas que os soldados apertam entre os dentes.

As rubras flores vermelhas não são papoilas, não.
É o sangue dos soldados que está vertido no chão.

Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a assobiar.
São os silvos das balas cortando a espessura do ar.

Depois os lavradores
rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados,
e a terra dará vinho e pão e flores
adubada com os corpos dos soldados.

António Gedeão

Thursday 6 June 2019

AS RUAS


O que era inquietação fez-se tranquilidade.
A agitação de agora é uma expressão de alívio.
Estão as paredes cheias de inscrições explosivas,
a vermelho, a amarelo, a azul, a verde, a preto,
e de todos os lados surgem rudes cortejos,
com cartazes, bandeiras e protestos vibrantes,
na sua confusão o desejo afirmando
de mais justiça, de mais luz, de mais vontade.
Um povo prisioneiro quebrou de vez as grades.
Um povo amordaçado descobriu-se a pensar.
Por fim, na liberdade a aprenderá a ter.
Por fim, no pensamento encontrará o gosto
da paz, da harmonia e da fraternidade.

Armindo Rodrigues

Monday 3 June 2019

Uma nova mulher


Que venha essa nova mulher de dentro de mim,
Com olhos felinos felizes e mãos de cetim
E venha sem medo das sombras, que rondam o meu coração,
E ponha nos sonhos dos homens a sede voraz, da paixão

Que venha de dentro de mim, ou de onde vier,
Com toda malícia e segredos que eu não souber
Que tenha o cio das corças e lute com todas as forças,
Conquiste o direito de ser uma nova mulher

Livre, livre, livre para o amor
quero ser assim, quero ser assim
Senhora das minhas vontades e dona de mim

Paulo Debétio

Saturday 1 June 2019

paredes de areia




a minha casa ainda é a minha casa
mas já não moro lá

a minha família ainda é a minha família
mas não mora comigo.

são as paredes que me acolheram

e a educação que me deu

que me expulsam.

VL

Thursday 30 May 2019

sem título


esse prado, esse chão de labareda, ou deserto, que importa, até mesmo um oceano inteiro levantado em vagas crestadas até à espuma, são a brasa com que marcamos na carne o valor do caminho e os obstáculos que nos fazem crescer as asas que nos erguem por esses céus acima, por sobre a muralha. da china ao outro lado do mundo. como um cavalo resfolegante e aceso. ou uma nave a remos de milhões de escravos, onde cada um deles somos nós carregados de vigor e suor com os braços a puxar e a empurrar a madeira lascada ao batimento do músculo cardíaco obediente ao clamor do bombo que também somos nós que tocamos.
o tom épico das linhas dos poemas é apenas o clímax da montanha, fica após uma escalada trabalhosa e nem sempre entusiasmante e antes de uma queda de fazer a gravidade entrar pelo corpo adentro e o sangue sair pelo corpo afora. essa é a maravilha da dor e do amor, poder encerrar num punho fechado e forçosamente vazio, todo o significado das coisas e um pouco dos fluídos originários do universo.
 
VL

Monday 27 May 2019

sangue


uso sempre a mesma tinta quando escrevo.

VL

Friday 24 May 2019

sem título


a pele é a mais osmótica
das superfícies
em nenhum outro deserto
nasceria de uma flor
um oásis

semente certa
a carne
desse rio
que encontra entre as dunas
um caminho oculto

vem-te no meu coração
e não precisarás de água
nem bússola.

VL

Tuesday 21 May 2019

anda


anda
deixa a manta do alentejo 
cobrir o pássaro cansado
que trazes no peito
e abraçar o teu músculo fremente 
no fresco da água
no calor do campo
a terra pensa as chagas
e sara a vida.
 
VL

Saturday 18 May 2019

sem título


vou-me embora
não pra Pasárgada
mas de volta ao musgo
do silêncio
onde ainda se estendem os meus rizomas
serenos
alheios ao oxigénio
da multidão.

VL

Wednesday 15 May 2019

R.


escreve-me um poema
com voz grave
e língua tímida entre dentes miúdos.
no seu corpo um astro morto
acende-se de asas abertas e plumagem de chamas
palavras âmnio
nascidas na maternidade de estrelas
dos teus pulmões.

VL

Sunday 12 May 2019

sem título


quarenta mil quilómetros pelo meridiano
uma revolução completa
das auroras boreais não podes dizer que não existem
mas resta-te pequena uma memória incerta
como do tempo em que os animais falavam
uma volta intacta com dois equadores pelo meio,
quatro trópicos, 
e nem um achado arqueológico sobre o medo
ou tratado sobre a lama
só a fuligem de enxofre dos vulcões te recorda o que vieste fazer ao mundo.
eis a tarefa dos mortais. cuspir como a terra as entranhas e deixar que o vento espalhe as cinzas.
 
VL

Thursday 9 May 2019

sem título


o meu gato preto
o lua-cheia
à meia-noite acende-se
azul como o dorso de uma alcateia
de corvos no cio.

VL