Friday 30 January 2015

Vigésima sexta canção

(À Maria Velho da Costa)
 
Que sabes tu de tigres e serpentes
ou que sei eu de pássaros dormindo?
Nas velhas casa pardas vão caindo
mais paredes de sangue sobre os dedos.
A voz ainda arde em fogo brando.
E este banho, Maria, não me aquece.

Eu sei lá, quantas palavras vou gastando
e quanto vou gostando de escrevê-las!
Mas custa. Muito mais do que se gosta,
apesar de eu fazer amor com elas.

E tu que sabes, talvez, das casas pardas,
das coisas poucas, das coisas que navegam
pelas palavras coisas que sossegam
o sangue das ideias que tu guardas,
tu saberás, Maria, talvez, das casas pardas,
mas eu sei de que cor os olhos cegam.

Ou já nada sabemos, repetindo
as palavras mais pardas do que as casas?


Joaquim Pessoa

in CANÇÕES DE ex-CRAVO E MALVIVER,
Moraes Editores, 1978.

Tuesday 27 January 2015

QUATRO QUADRAS DO ALEIXO


(Escritas hoje...)

Acho uma moral ruim
trazer o vulgo enganado:
mandarem fazer assim
e eles fazerem assado.

Sou um dos membros malditos
dessa falsa sociedade
que, baseada nos mitos,
pode roubar à vontade.

Não me dêem mais desgostos
porque sei raciocinar...
Só os burros estão dispostos
a sofrer sem protestar!

Esta mascarada enorme
com que o mundo nos aldraba,
dura enquanto o povo dorme,
quando ele acordar, acaba.

António Aleixo

Saturday 24 January 2015

O Relógio da Festa






Adriano Miranda

O relógio da Festa

Ao jantar, ainda antes de o relógio ser guardado na gaveta, disse ao meu pai e à minha mãe que queria ajudar a construir a Festa. Ir trabalhar para o Avante!.

Com dez anos, naquele mês de Setembro, pensei que toda a população do mundo estava junto ao rio Tejo, em Lisboa. Nunca tinha visto e sentido tanta gente. Por vezes não se conseguia andar. Olhava para cima, na tentativa de alertar os adultos par o facto de estar ali. Sentia-me apertado. Quase esmagado. Aquela massa compacta de gente estava feliz. Invadiam todos os lugares da antiga FIL. Eram milhões de conversas, milhares de sorrisos, infinitos abraços. E no domingo à tarde o comício teve de vir para a rua. A grande nave era pequena de mais.
Era a primeira edição da Festa do Avante!. Estávamos em 1976. Nunca se tinha visto nada igual. Foi a primeira vez que vi um palco gigante. Que vi músicos a sério. Sentia-me bem. A palavra que mais se ouvia era “camarada”. A segunda, “liberdade”. Tudo era novidade. Corredores de política. Corredores de comida. Corredores de música. Corredores de arte. Mas o espaço que ficou gravado na minha memória, porque passei lá imenso tempo, era o Espaço Internacional. Milhares de pessoas queriam ver o pavilhão da União Soviética, da RDA ou da Checoslováquia. Ali estavam os países socialistas e os partidos irmãos. Ali estava o imaginário.


Os países socialistas ofereciam livros, cartazes, harmónicas, chapéus, palas para o sol, emblemas, balões, bandeiras e até relógios de bolso made in DDR. Algumas coisas consegui no meio de tantos braços esticados. Não me lembro o quê. Excepto o famoso relógio de bolso. Uma proeza. Uma prova de que a persistência dá frutos. Durante anos, o relógio de horas certas embelezou a minha mesa-de-cabeceira. Todos os dias lhe dava corda num ritual quase mecânico. Tinha orgulho naquele pequeno relógio de algibeira conseguido a pulso. Com o tempo o relógio perdeu importância. Parou um dia nas seis e seis. Foi depositado numa gaveta.


Ao jantar, ainda antes de o relógio ser guardado na gaveta, disse ao meu pai e à minha mãe que queria ir trabalhar. Não sei que idade tinha. Ficaram espantados. Tinha idade ainda para estudar. Era novo, muito novo. Disse-lhes que queria ajudar a construir a Festa. Ir trabalhar para o Avante!. De mochila às costas, apanhei o comboio e fui. Amigos iam para as vindimas ou para a paragem da Celulose. Ganhavam dinheiro. Eu optei por ir para a Festa. Voluntário. Gastar dinheiro aos meus pais. Foi um mês alucinante. Conheci tanta gente. Fiz tanta coisa. E depois naquele fim de tarde da sexta-feira mágica, os portões abriram-se e a maré humana invadiu tudo o que tínhamos construído. Ficou a sensação do dever cumprido. A sensação de que a persistência dá frutos. Antes de sair de casa, pedi ao meu pai para todos os dias dar corda ao relógio!

Foram anos seguidos a cumprir o meu voluntariado. A Festa ficou-me no sangue. Cresci a ver a Festa crescer. Preguei milhares de pregos. Coloquei tubos. Pintei murais. Reguei a relva. Recolhi o lixo. Desenhei letras. Serrei madeira. Dancei. Abracei. Beijei. Ali, naqueles metros quadrados a perder de vista, sentíamo-nos bem. Sentíamos paz. Dávamos sentido à vida. Éramos solidários. Éramos amigos. Ali, era outro mundo. Um mundo sonhado e desejado. Um mundo difícil de conseguir. Um mundo possível. Humanista. Era o electricista, o canalizador, o arquitecto, a costureira, o cozinheiro, o pintor, o artista, o técnico de som, o jardineiro, o médico, a enfermeira, o bombeiro, o reformado, o estudante... eram tantos e sempre tão poucos. Era tão gigante aquela tarefa colectiva. Ambiciosa. Construir uma cidade em três meses para durar três dias. A Festa começava com um esqueleto de tubos ao alto. Ia sendo construída, levantada do chão. Gostava de adivinhar as formas. Crescia todos os dias. E depois das paredes ao alto, artistas plásticos davam vida ao contraplacado castanho-claro. A Festa ganhava cor e mensagem. E quando as centenas de mastros se engalanavam com bandeiras de várias cores, a sexta-feira mágica aproximava-se. Eram três dias de sã loucura. Uma maravilha.

Deixei de ajudar a construir a Festa no ano em que coloquei o relógio na gaveta. O rumo da vida assim o quis. Continuo a admirar o empenho e a dedicação que homens e mulheres entregam naquela quinta ajoelhada perante o Tejo. Lugar de liberdade. Lugar de cultura e saber. Lugar fraterno. O mundo necessita de muitos lugares assim. Nunca faltei à chamada. Nunca faltei a uma Festa. São já 42 edições. Existem amigos que só se abraçam uma vez no ano. É na Festa. Outros já partiram e ficaram no coração. A Festa do Avante! é um caldo de emoções. Ao fim do dia, a brisa combate o calor. Gosto de me sentar na relva e olhar para aquela cidade que cada vez está maior. Penso como é possível. De onde continua a vir tanta força para planear, organizar e dar vida a um dos maiores acontecimentos políticos da Europa. Não encontro uma resposta mas muitas respostas.

A propósito desta crónica tirei o relógio da gaveta. Continuava nas seis horas e seis minutos. Dei corda e os ponteiros começaram no seu ritual como se o tempo não tivesse andado. Talvez o relógio made in DDR ainda não saiba que o Muro de Berlim caiu. Que perdeu a nacionalidade. Que agora é alemão unificado. Mas os ponteiros teimam em trabalhar. Numa luta por um tempo novo. O velho relógio alemão ainda não morreu.

amiranda@publico.pt

Wednesday 21 January 2015

COM A NATUREZA APRENDE


Com a natureza aprende,
mas para a modificar.
O honrado não se vende.
Renega quem te pagar.
Não há acção sem matéria,
nem matéria sem acção,
nem inteligência séria
sem séria meditação.
Na variedade do mundo
reside a sua unidade.
Até de um poço profundo
pode nascer claridade.

Armindo Rodrigues

Sunday 18 January 2015

Viver sempre também cansa


O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

José Gomes Ferreira



Thursday 15 January 2015

TESTAMENTO


Abre os olhos - o sol é teu.
Mergulha as mãos - a água é tua.
Deixo-te o sol, o mar o céu
que poisa no beiral da nossa rua.
E os trigais do dia que desponta
e as flores da terra que me cobre.
Toda a riqueza milenar, sem conta,
de mais um poeta pobre.

Deixo-te as palavras que não gritaram
estranguladas pelo nó do medo;
e as outras, fuziladas, que tombaram
nos pátios do degredo.
E os sonhos por abrir; hoje, no sono
dos séculos que chamaram eterno.
Toda a Primavera, todo o Outono,
das minhas árvores de Inverno.
E a luta que fundiu meu coração
num canto que sangrou certeza:
depois de mim virás, ó meu irmão!,
mais claro e mais limpo de tristeza.

Luís Veiga Leitão

Monday 12 January 2015

*


Escrevo em silêncio
A palavra mora debaixo
Do linho
Rente ao arrepio da pele.
Sorvo-a
Demoro-me
E lá encontro o sentido
Possível
Para a desarrumação do mundo.

Sei então
O lugar da sede
Onde o pó do tempo
Demora a pousar
E ninguém se lembra mais da morte.
São segundos de fome
E nem o delírio das mãos
Sabe mesmo
Do inicio da matéria.
Apenas os viajantes
Mais antigos
Sabem deste mar
Onde o sal das águas
É a vontade dos dedos
Em ânsia
À procura de carne
que lhes dê fôlego.
Todos habitamos o limiar da loucura
Ou não fosse a canina solidão
Capaz de tão afiados dizeres.
Não sei de onde venho
Nem que paisagens rasgar
Mas tenho o rosto do que amo
Agarrado ao tacto cego
E às milhas por andar
Da saudade
(outro nome para a memória
Do que fomos construindo)
E da imensa estepe
Que sempre rompe
As membranas finas
Que vamos
Teimosamente
Ancorando nos outros.
Também eles
Bestas feridas
Buscando em todos
(como mães à pergunta do filho morto)
Alguma ternura que nos salve.

Lains de Ourém

Friday 9 January 2015

DE CABEÇA LEVANTADA

A história que se segue foi-me enviada por um amigo - e completada por umas quantas buscas minhas na internet.
É a homenagem do Cravo de Abril à memória dos heróicos jogadores de futebol do Dínamo/FCStart, que souberam morrer de cabeça levantada enfrentando os criminosos nazis.


Nos ano de 1941, as hordas nazis invadiram a Ucrânia - então uma República da União Soviética.
O país, e de forma especial a cidade de Kiev - a capital - transformou-se num inferno de violência, repressão, perseguições, prisões, terror.
A dada altura, os alemães levaram para Kiev centenas de prisioneiros de guerra, que não estavam autorizados nem a viver nas casas nem a trabalhar, pelo que, doentes e desnutridos, vagueavam pelas ruas, na mais absoluta indigência.

Entre esses soldados estava Nikolai Trusevich, o outrora famoso guarda-redes daquela que era a mais popular de todas as equipas de futebol da época - o Dínamo de Kiev.
Aí o descobriu, um dia, um tal Josef Kordik, adepto fervoroso do Dínamo, dono de uma padaria e que, por ser alemão se movimentava relativamente à vontade na cidade ocupada.
Kordik, violando as leis dos ocupantes nazis, levou para a padaria o seu ídolo Trusevich, com o qual viria a firmar grande amizade e ao qual deu a tarefa de encontrar os seus antigos colegas de equipa.

Trusevich percorreu a cidade devastada dia e noite e foi descobrindo, um a um, os seus colegas do Dínamo. Na busca, encontrou ainda três futebolistas da equipa russa do Lokomotiv, que antes fora grande rival do Dínamo.
Daí a criarem uma equipa de futebol - sempre fortemente estimulados pelo padeiro Kordik - foi um passo .
Como o Dínamo tinha sido proibido pelos nazis, deram à nova equipa o nome de FC Start, que, em 7 de Junho, de 1942, realizou o seu primeiro jogo, precisamente com uma equipa formada por soldados alemães - o FC Start venceu por 7 a 2.
O segundo jogo foi com uma equipa da guarnição húngara e o FC Start venceu por 6 a 2.
O terceiro, com uma equipa romena e o resultado final foi 11 a 0...
E assim sucessivamente, até que as vitórias do FC Start começaram a irritar os ocupantes nazis, que, a 17 de Julho, enviaram uma equipa do exército alemão para esmagar a canalha... e o resultado foi 6 a 2 - vitória do FC Start, obviamente...
Entretanto, a equipa do FC Start tornara-se um caso sério de popularidade: as suas vitórias sobre equipas dos ocupantes ganhavam um significado político e os campos de futebol enchiam-se de entusiasmados adeptos do Dínamo disfarçado, que eram, ao mesmo tempo, patriotas e militantes anti-nazis.
Os alemães requisitaram, então uma equipa de muito maior qualidade - o MSG, da Hungria - para acabar com aquilo: no primeiro jogo, o FC Start venceu por 5 a 1 e no jogo de desforra exigido pelos vencidos, voltou a ganhar, desta vez por 3 a 2.

Foi então que os alemães decidiram arrumar de vez a questão. Uma equipa composta por membros da Luftwaffe - o Flakelf, que era uma forte equipa e, como tal, era utilizada como instrumento da propaganda hitleriana, foi chamada a pôr ponto final nas façanhas desportivas dos futebolistas do FC Start...
Ou seja: os nazis recorreram ao melhor que tinham para acabar de vez com a atrevida invencibilidade do FC Start e estavam certos de que era isso que iria acontecer.
Por isso, foi grande o seu espanto e maior ainda a sua raiva quando, no final do jogo, a equipa de Hitler saiu derrotada por um humilhante 5 a 1...

Era demais!
E, de Berlim chegou a ordem para acabar com todos eles, o padeiro Kordik incluído.
Todavia, os chefes nazis ocupantes não se contentaram com isso: não queriam que a última imagem de todo aquele processo fosse a da equipa invencível e que, ainda por cima, tinha derrotado a selecção de Hitler.
E decidiram que, antes de os fuzilar, iriam fazer o grande jogo - e que, perante os badamecos soviéticos iriam demonstrar a superioridade da raça ariana...

O jogo foi em 9 de Agosto de 1942, com o estádio Zenit cheio de uma multidão que aplaudia e incitava os jogadores do FC Start - e vaiava os alemães.
Antes do início do jogo, um oficial das SS foi à cabine e, em russo, informou que iria ser ele o árbitro da partida e que todos deviam respeitar as regras, a começar pela de fazer a saudação nazi...
Alinhadas as duas equipas no campo, os jogadores do Flakelf - de camisolas brancas e calções pretos - bateram os calcanhares, fizeram a saudação nazi e gritaram «Heil Hitler!», enquanto os do FC Start - de camisolas vermelhas e calções brancos - levaram as mãos ao peito e gritaram «Fitzculthura!» - expressão soviética que proclamava a cultura física.


Ao intervalo, apesar da absoluta e escandalosa parcialidade do árbitro, o FC Start vencia por 2 a 1... e um outro oficial das SS foi à cabine dizer como era e que pode resumir-se em meia dúzia de palavra: se ganharem o jogo serão todos mortos.

Os atletas do FC Start consideraram a situação, pesaram prós e contras, colocaram a hipótese de não reentrarem em campo para a segunda parte... mas pensaram nas suas famílias em grande parte assassinadas pelos nazis... pensaram nos crimes cometidos pelos ocupantes... e ouviam a multidão, nas bancadas do estádio, gritando por eles...
E decidiram ir jogar - com a consciência de que com tal opção estavam a condenar-se à morte.

Deram um baile de futebol aos nazis. A dada altura, o avançado Klimenko, fintou o guarda-redes alemão deixando-o caído no terreno e, com a baliza à mercê, num gesto de desprezo, de superioridade absoluta, deixou a bola na linha de golo e virou as costas ao guarda-redes - assim com quem diz não marcamos mais golos porque não queremos...
O FC Start ganhou por 5 a 3.
Os jogadores saíram do campo sob os aplausos vibrantes da multidão que enchia as bancadas - e, hoje, 70 anos passados, os possuidores dos bilhetes daquele jogo memorável, têm entrada livre no estádio do Dínamo de Kiev.

O primeiro a morrer, torturado em frente de todos os outros, foi o padeiro Kordik.
Klimenko, Kuzmenko e Trusevich (este com a camisola do FC Start vestida) foram brutalmente assassinados no campo de concentração de Siretz...
Os restantes foram torturados até à morte - à excepção de dois - Goncharenko e Sviridovski - que conseguiram fugir e sobreviver até à libertação de Kiev, pelo Exército Vermelho, em Novembro de 1943.

Um monumento erguido em Kiev, homenageia esses heróicos futebolistas e cidadãos soviéticos - e nele pode ler-se: «AOS JOGADORES QUE MORRERAM DE CABEÇA LEVANTADA ANTE O INVASOR NAZI».

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Meus amigos:
A partir de hoje, vou fazer uma pausa - breve, espero - nestes encontros diários convosco.
Voltarei.
Talvez em Abril - com os Cravos...

E não esqueçam: dia 11, o encontro é no Terreiro de Paço.

Abraços.
Fernando Samuel

Tuesday 6 January 2015

A divisão do frango


Alguns ficam com as minhas partes
piores. Isto é como a divisão do frango
em família numerosa. Faltam coxas para todos.
Isto é como a aprendizagem da generosidade:
o peito ou o pescoço ou as asas. Lá em casa,
fazíamos de conta que preferíamos outra coisa
e dávamos as partes melhores aos irmãos.
Não sei o que isso dirá de mim e dos meus irmãos.
Sei que eu e os meus irmãos tivemos sempre
Uns dos outros as partes melhores.
Parece-me justo e valioso. Parece-me informação
digna de CV ou de Wikipédia. Isto devia dar empregos.
Isto devia ser o primeiro dado de uma biografia:
«dava a parte melhor do frango aos seus irmãos».

E depois apaixonamo-nos. Complica-se a divisão do frango
quando há coxas para todos: para dois.
Difícil haver tanta coxa. Difícil não ser preciso dividir.
Difícil ver cada vez menos os irmãos, que provariam à mesa
sermos nós ainda a criança generosa. E que se houvesse
menos frango ou mais gente, ofereceríamos a parte melhor.

Alguns ficariam com as minhas partes piores.
Os que não amei, não gostavam de me ver comer frango.
Comiam ossos e deram cabo de mim. Ainda me telefonam.
Os que amei iam comigo à churrasqueira, pediam molho picante
aparte (sempre tive medo de perder o ar) e batatas fritas na hora.
Um dia, nunca mais me quiseram ver.

Apenas pelos meus irmãos soube dividir-me.
Apenas eles ficaram para lá da refeição.

Não quero com isto justificar-me. Entendo.
Parti bem o frango mas parti sempre mal.

Só que às vezes lamento ninguém ter esperado
Que eu crescesse. É natural.
Em tempos de aviários, ninguém espera isso de um frango.
 

Filipa Leal

Saturday 3 January 2015

MULHER-RESISTENTE

A Mariana Janeiro em nome de todas
as mulheres que lutaram contra o fascismo


Eram tantas as torturas...
O Chicote sobre a carne
que o corpo te inchava
inchava
pelas vergastas cortado

Eram dias sobre noites
em que os olhos te queimaram
em que as veias te romperam
e os ouvidos te rasgaram

Eram meses sobre meses
na cela

isolada

Torturas quantas sofreste
minha irmã
sempre calada

Que à polícia não se fala
nem que se morra
à pancada!


Maria Teresa Horta

Thursday 1 January 2015

*


dispo-me de velhos lençóis
acumulados como os velhos sonhos
à beira do tempo que foi nosso
e onde tudo já se perdeu menos
a memória que hei-de guardar
das horas em que não percebi
que esquecias o meu nome
por entre nomes soletrados naqueles
lentos minutos em que o sono não vinha

só muito tarde percebi que
o nosso amor era apenas um
inquilino temporário da nossa pele
roubado sabe-se lá a quem
até ao dia em que disseste tenho pressa

e aquela espessura transparente que
só na cama as almas ganham
desapareceu como se descesse
sem ruído as escadas das nossas noites
e do que restava dos nossos corpos
- peças roídas de engrenagens vazias
que te habitavam até saíres de mim
como de um lugar incómodo


Alice Vieira