Tuesday 30 September 2014

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Amar é perder-se no tempo,
ser espelho entre espelhos.
Ao que é temporal chamar eterno...
Amar é despenhar-se
cair infindavelmente,
o nosso par
é o nosso abismo...
amar é duplo
e sempre dois
dois é querer continuar o mesmo
e já ser outro, e outra
amar é ter olhos nas pontas dos dedos
tocar no nó em que se enlaçam
quietude e movimento
Quero-te...
A tarde foi a pique
lâmpadas e reflectores
devassam a noite
com palavras de água, chama, ar e terra
inventamos o jardim dos olhares
diante de nós
está o mundo.

Octavio Paz

Saturday 27 September 2014

LOUVOR DO PARTIDO


O indivíduo tem dois olhos
o Partido tem mil olhos.
O Partido vê sete Estados
o indivíduo vê uma cidade.
O indivíduo tem a sua hora
mas o Partido tem muitas horas.
O indivíduo pode ser destruído
mas o Partido não pode ser destruído.
Pois ele é a guarda-avançada das massas
e conduz a luta delas
com os métodos dos Clássicos, que são tirados
do conhecimento da realidade.

Brecht

Wednesday 24 September 2014

FRENTE A FRENTE


Nada podeis contra o amor.
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
- e é tão pouco.

Eugénio de Andrade

Sunday 21 September 2014

Aquele que se sentou à porta do tempo


Aquele que se sentou à porta do tempo
e deixou dormir o pensamento sobre a relva
em demasia confiante ou desenganado

aquele que se sentou estupidamente no tempo
e o deixou escorrer irremediavelmente entre os dedos
como velha adormecida no outono

honestamente aproveitou o oásis
alheio ao decorrer das caravanas
no livro dos povos ficará
com o prolongamento dos tiranos.

Rui Namorado

Thursday 18 September 2014

Que é voar?



É só subir no ar,
levantar da terra o corpo, os pés?
Isso é que é voar?
Não.
Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre, leve, independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não-vivência.
E isso é voar?
Não.
Voar é humano
é transitório, momentâneo…
Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:
isso é partir
e não voltar.

Ana Hatherly

Monday 15 September 2014

COROAI-ME DE ESPINHOS...


Lírios, já não, que me parecem luzes
de luto.
Rosas, pior,
que são a burguesia
das flores
no apogeu.
Tojos arnais, apenas.
Cilícios vegetais
sobre a fronte de quem
tem nojo das carícias do presente.
Tojos arnais, até que possa alguém
ser poeta e ser gente.

Miguel Torga

Friday 12 September 2014

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O i, número imaginário
com muita imaginação,
imaginara o cenário
para um filme de ficção.

A história começava
dentro de uma equação
de segundo grau, e o vilão
era uma raiz quadrada.

da fórmula resolvente
que assaltava à mão armada
um pobre x que passava,
roubando-lhe o expoente.

O herói, um matemático,
perseguia-a tenazmente
de equação em equação
até uma de quinto grau.

Aí, a raiz quadrada,
finalmente encurralada,
sem fórmula de esconder-se,
acabava por render-se.

A ideia era excelente,
o final um teorema.
Ficariam certamente
na História do Equacinema.

Mas o público queria
filmes de geometria,
ângulos obtusos, tangências,
estúpidas circunferências…

Por isso o i nunca mais
Se deu a fazer ficção.
Cedeu: «Não gasto imaginação
com números irracionais!»

Manuel António Pina

Tuesday 9 September 2014

FULMINADOS DE ESPANTO


Fulminados de espanto
ensinam:
sempre assim foi
há-de ser sempre assim

Da saudade aberta como gume
na cinza que era fogo
e que perderam

da própria cobardia receada
nada dizem

Ensinam
o denso labirinto do seu tédio

Rui Namorado

Saturday 6 September 2014

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para falarmos do meio de obter o poema,
a retórica não serve. trata-se de uma coisa simples, que não
precisa de requintes nem de fórmulas. apanha-se
uma flor, por exemplo, mas que não seja dessas flores que crescem
no meio do campo, nem das que se vendem nas lojas
ou nos mercados. é uma flor de sílabas, em que as
pétalas são as vogais, e o caule uma consoante. põe-se
no jarro da estrofe, e deixa-se estar. para que não morra,
basta um pedaço de primavera na água, que se vai
buscar à imaginação, quando está um dia de chuva,
ou se faz entrar pela janela, quando o ar fresco
da manhã enche o quarto de azul. então,
a flor confunde-se com o poema, mas ainda não é
o poema. para que ele nasça, a flor precisa
de encontrar cores mais naturais do que essas
que a natureza lhe deu. podem ser as cores do teu
rosto – a sua brancura, quando o sol vem ter contigo,
ou o fundo dos teus olhos em que todas as cores
da vida se confundem, com o brilho da vida. depois,
deito essas cores sobre a corola, e vejo-as descerem
para as folhas, como a seiva que corre pelos
veios invisíveis da alma. posso, então, colher a flor,
e o que tenho na mão é este poema que
me deste.

Nuno Júdice

Wednesday 3 September 2014

O IÇAR DA BANDEIRA


(poema dedicado aos Heróis do povo angolano)

Quando voltei
as casuarinas tinham desaparecido da cidade

E também tu
Amigo Liceu
voz consoladora dos ritmos quentes da farra
nas noites dos sábados infalíveis

Também tu
harmonia sagrada e ancestral
ressuscitada nos aromas sagrados do Ngola Ritmos

Também tu tinhas desaparecido
e contigo
os Intelectuais
a Liga
o Farolim
as reuniões das Ingombotas
a consciência dos que traíram sem amor

Cheguei no momento preciso do cataclismo matinal
em que o embrião rompe a terra humedecida pela chuva
erguendo planta resplandecente de cor e juventude

Cheguei para ver a ressurreição da semente
a sinfonia dinâmica do crescimento da alegria nos homens

E o sangue e o sofrimento
eram uma corrente tormentosa que dividia a cidade

Quando eu voltei
o dia estava escolhido
e chegava a hora

Até o rio das crianças tinha desaparecido
e também vós
meus bons amigos meus irmãos
Benge, Joaquim, Gaspar, Ilídio, Manuel
e quem mais?
- centenas, milhares de vós amigos
alguns desaparecidos para sempre
para sempre vitoriosos na sua morte pela vida

Quando eu voltei
qualquer coisa gigantesca se movia na terra
os homens nos celeiros guardavam mais
os alunos nas escolas estudavam mais
o sol brilhava mais
e havia juventude calma nos velhos
mais do que esperança era certeza
mais do que bondade era amor

Os braços dos homens
a coragem dos soldados
os suspiros dos poetas
Tudo todos tentavam erguer bem alto
acima da lembrança dos heróis
Ngola Kiluanji
Rainha Ginga
Todos tentavam erguer bem alto
a bandeira da independência.

Agostinho Neto

Monday 1 September 2014

Ansiedade



quero compor um poema
onde fremente
cante a vida
das florestas das águas e dos ventos.
que o meu canto seja
no meio do temporal
uma chicotada de vento
que estremeça as estrelas
desfaça mitos
e rasgue nevoeiros — escancarando sóis!

Manuel da Fonseca