Wednesday 24 April 2024

100 ANOS QUE PASSARAM, 100 ANOS QUE HÃO-DE VIR

 
1 O PRIMEIRO DIA
 

- Boa noite, mulher! João, dá um beijo ao pai. 

- Chegaste tão tarde, homem. Deves vir com fome. Fiz aquela sopa de couve com batatas de que tanto gostas. Tem um pingo de azeite e duas rodelinhas de linguiça, era o que havia. 

- São para o miúdo. 

- Hoje é Domingo, pai. Não foste à fábrica…(1) 

- Fui a Lisboa, à Rua da Madalena… Gente como eu, de famílias como nós… 

- Desembucha, homem! Até o moço parou de comer. 

- Então vou contar-te do que é feita essa sopa que tens no prato.

- Sim, pai, conta-me tudo. 

- Os operários, como eu, lidam com ferramentas. Alicates, bigornas, ferros de soldar, martelos e punções, entendes? Têm todas o mesmo dono, aquele a quem chamamos patrão. Mas também lidamos com grilhetas, correntes de amarrar, e puas de colar ao chão. São as ferramentas da exploração e também têm o mesmo dono. 

Se não nos libertarmos das segundas seremos eternamente escravos das primeiras. 

É por isso que o pai sai de noite para a fábrica e só chega a casa de noite. É por isso que achamos boa esta sopa quente de couve com batatas. É por isso que hoje fui a Lisboa, à Rua da Madalena. 

Gente como eu, de famílias como nós… 

Tudo o que acabaste de ouvir está dentro desse prato de sopa que tens à frente. 

- Serve-te, homem, mais uma concha, precisas de te alimentar! 

- Serve-te a ti e serve também o menino.   


 2 UM PUNHADO DE TRIGO 

- Bom dia, mãe! 

- Bom dia, João! 

Depois de comeres quero que vás à despensa e olhes bem para a saca de trigo que o teu pai trouxe. 

- É tão grande, minha mãe, como pode o pai com ela?    

- Com a vida, meu amor: É o peso da vida! 

- E agora, o que queres que faça, mãe? 

- Quero que a abras e apanhes um punhado de trigo, com a mão bem fechada, e voltes para a mesa. 

Quantas bagas de trigo encontraste na saca? 

- Não sei, mãe, devem ser milhões… 

- Cada baga é uma pessoa que deu tudo por nós. Que enfiaram no degredo, que maltrataram, que torturaram, e que, até mataram. São pessoas do Mundo inteiro. 

- E este punhado, mãe, que trago junto a ti? 

- Essas são as nossas, as da nossa terra. Cada baga tem um nome, um rosto, uma identidade. A todas elas roubaram anos de vida e, por vezes, a vida inteira. Afinal tudo o que queriam era o bailado primordial das searas ao vento. Foi para isso que nascemos: somos filhos da mesma terra e um dia seremos iguais no bailado e na bonança. 

- É por isso que tu dizes que o futuro há-de ser melhor? 

- Sim, meu filho, é por isso que digo. E ele também está nas tuas mãos e no punhado de trigo que trouxeste. 

- Que farei com ele, minha mãe? 

- Espalha as bagas no alegrete do quintal, aquele que o pai pintou de vermelho, deita-lhe uma pouca de água e a Natureza fará o seu curso. 

- Como nós, mãe? 

- Como nós, amor!  


3 MORTALHAS E LÁPIS DE COR 

- Bom dia, mãe! 

- Bom dia, filho! 

- A mãe hoje vai sair. Vou visitar o pai. Levo-lhe mortalhas, um lápis e os resultados da bola. 

- Mortalhas, mãe? O pai não fuma… 

- Por isso lhe levo um lápis. 

- A que horas voltas, mãe? 

- Não sei! O pai um dia disse-me que o inferno tem os relógios parados. 

- Espero-te à porta, então, a noite inteira se for preciso. 

- É uma noite muito longa, meu amor. Faz muito frio e os lobos rondam a casa.  Se quando chegares eu não estiver, vai para casa da tia Amélia. Ela sabe de tudo e tem tudo o que tu precisas: pão com manteiga, uma canjinha para o jantar, uma sebenta e lápis de cor. 

- Queres que te faça um desenho mãe? 

- Quero muito, João! Quero muito! 

- Vou desenhar o nosso alegrete vermelho com o trigo a despontar. Ao pezinho mais bonito, aquele que se inclina para mim, darei o nome do pai. 


4 LIVRO EM BRANCO 

- Pai! 

- Diz, filho. 

- Que livro é aquele que tens na mesinha de cabeceira? 

- Foi feito por mim, nas pequenas horas vagas. Quem me ensinou foi um velho mestre encadernador. Cosidinho à mão, fio norte, requife… tudo o que um bom livro merece. 

- Mas não tem nada escrito, pai. Para que serve um livro em branco? 

- Para colocarmos um sonho em cada folha. 

- Mas como? Explica-me tudo, pai. 

- Uma canção bonita, um quadro, um poema, até um bailado podemos ver nesse livro. Está lá tudo o que quisermos e só nós conseguimos ver e ouvir. 

Tudo o que nós amamos e eles odeiam cabe nesse Livro dos Sonhos. 

- Mas isso não é perigoso, meu pai? 

- É! Se um dia eles cá voltarem para me levarem de novo, certamente roubarão o livro. Nunca entenderão aquelas folhas em branco, nunca conseguirão ler a esperança de cada folha. Essa será a nossa vitória desse dia. 

- E se assim for, pai, o que faremos? 

- Faremos um livro novo. 

Chegará o dia em que, com uma caneta de tinta permanente, passaremos a limpo tudo o que nos vai na alma e abriremos o nosso livro para que todos o possam ver. Com ele faremos uma grande Festa. Todos os anos faremos uma grande Festa. Todos os sonhos escondidos terão a luz do dia, tudo o que o futuro nos destina terá uma candeia. 

- É por isso que tu e a mãe dizem que futuro espera por nós? 

- É, filho. É por isso mesmo! 

- Pai, posso abrir o livro e imaginar um conto bonito com crianças, flores e animais? 

- Podes, João! Esse livro será a tua maior herança.   


5 CASA SEM MORADA 

- O que estás a fazer, pai? 

- Uma mala com um avio de roupa para ti. Pijama, roupa de sair, e um agasalho de lã feito pela tua mãe… Acho que está tudo. 

- Mas para quê, pai? Onde me levas? 

- Vais passar uns tempos a casa da tia Amélia. Ela já tem um divã de abrir e fechar no canto da sala. 

- E tu, pai? E a mãe? 

- Nós vamos passar uns tempos numa casa sem morada. 

- Mas onde, pai? Como saberei de vós? 

- Vais levar contigo o nosso Livro dos Sonhos, aquele que tem as folhas em branco e só nós conseguimos ler. Quando a saudade te apertar, abre o livro. Poderás ver os pais nos locais que o teu coração te indicar. É um segredo só nosso! 

- Mas quando poderei voltar a tê-los? 

- O inferno tem os relógios parados… 

- E vocês, queridos pais, o que vão fazer longe de mim? 

- Fazer andar os ponteiros, meu filho. Fazer andar os ponteiros.    


6 O DIA MAIS BONITO 

- Tia Amélia!? 

- Diz João… 

- O relógio da sala está quase a dar as 11 da noite, estás a ouvir rádio… 

- São insónias e pressentimentos… tenta dormir, meu amor. 

Quis saber quem sou 
O que faço aqui 
Quem me abandonou 
De quem me esquec

- É tão bonita essa canção, tia. 

- Pois é, João! Vou baixar o som, por causa dos vizinhos, vê se dormes, a tia não consegue. 

Grândola, vila morena 
Terra da fraternidade 
O povo é quem mais ordena 
Dentro de ti, ó cidade! 

- Tia, essa canção fala de coisas perigosas, daquelas coisas que só nós vemos no livro que o meu pai fez… 

- Sim, meu amor. É verdade! Esta é a noite de todas as insónias e pressentimentos. - Tia, também tenho insónias e são 4 de madrugada… Não desligues o rádio. 

Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas… 

- Tia, os ponteiros do relógio da sala não param. Será que o relógio do inferno também começou a trabalhar? 

- Acho que sim, João! Isso só quer dizer que ele tem os dias contados. 

- E os meus pais, tia? Tenho tantas saudades… 

- Quando o Sol subir vou à procura deles. Acho que sei onde os encontrar. 

- Onde, Tia? Onde estarão? 

- No Largo de Carmo. É mais um pressentimento… 

- Vais deixar-me sozinho? Tenho medo! 

- Hoje não, João! Hoje é o primeiro dia sem medo. Faz um desenho bonito na tua sebenta para quando os teus pais chegarem. Eles vão ficar tão felizes… 

- Está bem, tia Amélia! Vou desenhar um menino como eu a pôr uma flor no cano de uma espingarda.    


7 O LIVRO DA LEI 

- Bom dia, mãe! Que livro é esse que trazes? É o nosso Livro dos Sonhos? 

- Não, querido! É o Livro da Lei. Foi o Dia Mais bonito que permitiu fazê-lo. 

- E nesse Livro da Lei está lá algum sonho nosso? 

- Sim! Estão lá muitas coisas que sonhámos e a promessa de sonhos vindouros. Está lá uma casa para todos, uma escola bonita para ti e para os outros meninos, estão lá doutores e enfermeiros para quando estivermos doentes, estão lá os livros que eram proibidos e que agora deixaram de ser, a música, o teatro… Tudo o que estava no Livro dos Sonhos agora está a tinta permanente no Livro da Lei. 

- E eles vão deixar? Vão respeitar esse Livro? 

- Vão fazer o que puderem para o evitar. Lembras-te quando os pais foram morar para uma Casa sem Morada? 

- Sim, minha mãe! Fiquei na casa da tia Amélia… 

- Essas casas agora têm todas morada e, para que não haja dúvidas, têm todas a nossa bandeira à entrada. 

Vão ser maus como sempre foram, vão tentar destruí-las, vão mentir com todos os dentes sobre as nossas intenções, vão tentar enganar o Povo com todas as mentiras que aprenderam no inferno. 

- E nós, o que faremos, mãe? 

- O que sempre fizemos. Lembras-te das ferramentas que o pai usa? Alicates, bigornas, ferros de soldar, martelos e punções… 

- Lembro muito bem, mãe. 

- Continuaremos ao lado de quem as usa. De quem usa as ferramentas da terra; de quem usa as ferramentas do pensamento; de quem usa o coração a bater por um Mundo melhor. 

- Só que agora esse sonho já tem morada certa… 

- Sim, meu amor! Esse sonho habita em casas com a nossa bandeira à porta. São as casas mais Livres do Mundo.    


8 O FUTURO TEM PARTIDO

- Pai!?

- Diz, João!

- Lem­bras-te quando foste a Lisboa, à Rua da Ma­da­lena?

- Lembro-me muito bem! Foi há 100 anos, mas lembro-me como se ti­vesse sido ontem.

- Quando che­gaste a casa fa­laste-me de gri­lhetas, cor­rentes de amarrar, e puas de colar ao chão.

Ex­pli­caste-me isso en­quanto jan­tá­vamos uma sopa de couve com ba­tatas…

- É ver­dade, meu filho! Foi a luta e a me­mória que nos trou­xeram aqui.

- E agora, pai? Conta-me tudo…

- Agora, ainda não nos li­vrámos delas… mas po­demos cerrar os pu­nhos à porta da fá­brica e erguê-los em todas as praças.

Somos todos iguais na hora do nas­ci­mento. Um mi­nuto de­pois pa­rece que temos o des­tino tra­çado. Uns, como o pai, têm de tra­ba­lhar muito para essa sopa que tens à frente. Ou­tros têm quem lhes ponha a mesa com co­midas e vi­nhos finos. Já não são nossos donos, mas ainda são donos de grande parte do nosso tra­balho.

- Achas que um dia dei­xará de ser assim?

- Tenho a cer­teza, meu filho! Tenho a cer­teza!

- Mas quando, pai? Quando?

- Não sei, João! Apenas sei que hoje é o pri­meiro dia dos pró­ximos 100 anos.

- Pai, vou fazer um de­senho desse dia!

- Faz! Quando es­tiver ter­mi­nado leva-o para a nossa casa, aquela que tem a ban­deira à en­trada, e pen­dura-o na pa­rede por cima da es­tante. Assim, quando algum de nós es­tiver de­sa­ni­mado po­derá olhar para o teu de­senho e sorrir com a cer­teza que o Fu­turo tem Par­tido.

João Monge

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(1)  N.A. 6 de Março de 1921 foi um Domingo.  

#50Anosdo25deAbril

Sunday 21 April 2024

O Cravo

 
O cravo trevo levado
lavado cheirando a água
cravo meu sangue pisado
peito nora a puxar mágoa.
Mágoa sirene do vento
que o vento grita ao correr
mágoa que acende no tempo
um cravo punho a doer.
Cravo que é a morte ou é a vida
da vida mais desgraçada
tantas vezes mal sofrida
sofrendo a vida parada.
Até que a morte parida
seja a vida libertada.
Joaquim Pessoa (1948-2023)
in 'Amor Combate', 1976

Thursday 18 April 2024

Livro

Porque de tudo o que havia
ressaltavas tu, inteira, intensa, imersa no fogo,
terrivelmente límpida como uma ode ao trigo,
à beleza,
às rosas de saliva que cresciam
nos assombrados e húmidos canteiros
da minha boca,
eu te entendo
como se entende o sangue e a loucura,
como se entende o fogo e o rio,
como se entende a música e o sonho,
isto é,
gostava de te entender como coisa absoluta,
um barco, uma árvore, um farrapo de neve,
mas tu és um livro e eu um leitor de ti
que te folheia e saboreia página
a página,
cujo olhar permanece em sacrifício,
esfomeado e livre, sempre
esfomeado e livre,
sendo,
ou muito perto
de ser.
Joaquim Pessoa

Monday 15 April 2024

Presídio

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?
E o ventre, inconscientemente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio
Vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
David Mourão-Ferreira

Friday 12 April 2024

*

Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam
movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração.

Ruy Belo
in “Homem de Palavra(s)”

Tuesday 9 April 2024

Valsa da Libertação

Pesa-me inteira a flor que falta
Para a roseira ficar mais alta,
Pesa-me a lua e a noite vem
De espada nua, buscar alguém.

 
Pesa-me a neve ou a montanha:
Dizem que é leve, mas é tamanha!
Chumbo ou veludo, seja o que for,
Pesa-me tudo menos a dor.

Pedro Homem de Melo

Saturday 6 April 2024

ver no escuro

  todos nós podemos caminhar no escuro,
pelas vielas perdidas,
pelas ruas escondidas,
caminhar sob a chuva fria,
e sentir escorrer-nos pela fronte a água,
sentir nos lábios o sabor mais puro,
todos nós podemos,
podemos trilhar as vias da tristeza,
da dureza,
saltar o precipício e encarar nua
a morte e o futuro.
podemos caminhar sobre a terra ardida,
queimar os pés nas brasas que antecedem as cinzas,
ou voar pelo céu sem estrelas, navegar sem uma constelação,
e por aí nos perdermos sem sextante ou astrolábio.
todos é certo
podemos caminhar.
contudo,
espero,
que só chegue quem queira mesmo mesmo chegar.

Miguel Tiago 

Wednesday 3 April 2024

Seppuku

 Com a chegada de Março, as cerejeiras de inverno começavam lentamente a despedir-se das flores que as cobriram no princípio do fim do frio e da neve. A alvura começara a diluir-se para se abrir em verdes pedaços de terra que surgiam. Sob a copa aberta de uma cerejeira, segurou o cabo da espada com a mão direita e a bainha e a guarda com a mão esquerda.

Solenemente, contemplou, inclinando-se para baixo, o corpo e o seu sopro sagrado que em breve cessaria. Dali, se via ainda o prado onde morrera um e outro. Haviam morrido, porém ainda teriam a liberdade de partir com dignidade. No campo da batalha, agora coberto de um manto de sangue sobre o gelo e a neve, jaziam inúmeros os corpos já vazios. Embora com mais perdas, a batalha havia sido ganha, o inimigo retirara-se para não mais voltar. Igualmente, o seu líder ficara para sempre de peito aberto até que venha a apodrecer sob a terra.

Por isso mesmo, embora vencedores, a vida não teria agora a quem servir. E quem vive para servir, deixa de viver quando desvanece esse objectivo. Não é opção, é naturalidade. À medida que a primeira flor de cerejeira caiu da copa rósea, sentiram essa sua incontornável natureza. A flor não escolhera cair.

A mão direita cortaria agora a quadragésima sexta cabeça com a lâmina já baça do sangue que, frio, se espessava. Por detrás do homem ajoelhado, levantou a lâmina paralela ao solo sobre os seus ombros e por detrás do seu próprio pescoço. Quando o ajoelhado se penetrou e esventrou com a faca até às costelas, com a mão direita apenas, fez lançar sobre o pescoço num só golpe rápido e poderoso, a lâmina afiada do destino. Pendeu o corpo para frente, vazio, com a pele do pescoço segurando a cabeça ao tronco. Sacudiu o sangue vívido da lâmina, contemplando os quarenta e seis mortos esvaídos ao longo do campo branco e gelado.

Depois, sem ter quem lhe retribuísse a digna homenagem, tornou a embainhar a sua espada. Puxou com a mão direita o punhal e com o gume virado para os seus olhos, fê-lo entrar no seu corpo, sereno. Quando tombou, ainda viu tocar no chão a pequena flor, mesmo a seu lado.

Miguel Tiago

Monday 1 April 2024

sangue

hoje precisava de uma alma.
e há mesmo quem diga que uma me falta todos os dias.

Miguel Tiago

Saturday 30 March 2024


quando vierem despejar-te aos pés o mundo,
reduziste-te ao pó dos outros.

Miguel Tiago

Wednesday 27 March 2024

Canto Franciscano

Por onde passaste tu,
Que não soubeste passar
Pela sandália do tempo?
Pelo cílio do luar
Pelo cílio do vento
Pelo tímpano do mar
Por onde passaste tu,
Que não soubeste passar?

 
Por onde passaste tu,
Que me ficaste cá dentro?
Tenaz do fogo divino
Irmão pinho ou aloendro,
Por onde passaste tu,
Que me ficaste cá dentro?

 
Pois bem, nos campos da fome
Ou nos caminhos do frio
Se eu encontrasse o teu nome
Lançava-te o desafio
Por onde passaste tu,
Que ficaste cá dentro?

 
Por onde passaste tu,
Pétala viva dos cardos?
Rei das chagas e dos podres,
Por onde passaste tu?
Por onde passaste tu?
Não passaram minhas dores

 
Nascida mãe que não tive
Do pai que nunca terei
E aquilo que sobrevive
É o irmão que não sei
Uma espécie, uma espécie de fogueira
De corpo que me deslumbra
Tudo mais à minha beira
É uma réstia de sombra

 
Por onde passaste tu
Com artelhos de penumbra?
Eis-me, eis-me incendiado
Por não saber perdoar
Meu irmão passa de lado
Ai, eu sei como hei de passar
Meu irmão passa de lado
Eu sei como hei de passar

Ary dos Santos