Wednesday 30 November 2016

VAI INAUGURAR-SE O MUSEU DA CARIDADE

Aceitam-se récitas da dita.
Aceitam-se chás dançantes.
Aceitam-se confessionários.
Aceitam-se misericórdias.
Aceitam-se subscrições públicas.
Aceitam-se esmolas ao sábado.
Aceitam-se valas comuns.
Aceitam-se bairros económicos.
Aceitam associações de protecção às raparigas.
Aceitam-se conferências de S.Vicente de Paula.
Aceitam-se consultas grátis.
Aceitam-se hospitais.
Aceitam-se dispensários.
Aceitam-se necrológios.
Aceitam-se artigos de fundo.
Aceitam-se discursos patrióticos.
Aceitam-se sugestões para acrescentar esta lista.

E também se aceitam poemas sociais como este.

Jorge de Sena

Sunday 27 November 2016

MAS GALOPAS


A galope
um cavaleiro atravessava a noite.
Inútil perguntar-lhe
o que levava. Galopava.

À desfilada
atravessava noites, abismos, cidades.
Não lhe perguntásseis de onde veio,
aonde ia. Galopava.

Furacão
vingador, arcanjo desencadeado
que resta do que foste? Já não és fogo
nem vento. És cinza, pó.
Mas galopas.

Papiniano Carlos

Thursday 24 November 2016

LIVRE ARBÍTRIO


Dentro dum tosco barco
puseram-me a navegar
nas águas da absurdidade.

Sou livre de ser ou estar
- mas, estranha fatalidade -
ou vou no barco
ou charco...


Francisco Viana

Monday 21 November 2016

A MAIORIA DAS PESSOAS


A maioria das pessoas viaja na coberta dos navios
na terceira classe dos comboios
a pé pelas estradas
A maioria das pessoas

A maioria das pessoas começa a trabalhar aos oito anos
casa aos vinte
morre aos quarenta
A maioria das pessoas

Para todos há pão, salvo para a maioria das pessoas
arroz também
açúcar também
roupas também
livros também
há para todos, salvo para a maioria das pessoas

Não há sombra na terra para a maioria das pessoas
não há candeeiros nas ruas
não há vidros nas janelas

Mas a maioria das pessoas tem a esperança
Não se pode viver sem a esperança.

Nazim Hikmet

Friday 18 November 2016

SÓCIO GRANDE + SÓCIOS PEQUENOS


Havia no ar sornice e expectativa;
Não tinha chegado ainda o senhor Tota.
Todos falavam por falar, todos esperavam o senhor Tota.

«As reuniões não se fizeram para dormir.
É preciso fomentar as vendas da loja três.
Então as obras na loja quatro,
são as obras de Santa Engrácia?
E o senhor, o senhor que é que lá está a fazer?
E o senhor, o senhor com os seus cabelos brancos
o que é que vendeu nesta viagem?
Fez o que pôde, não!,
é preciso fazer sempre mais do que se pode.
A mercadoria é de terceira, mas não é boa?,
os senhores é que não sabem vender...
Os senhores é que não a querem vender...
E assim, onde é que isto tudo vai parar?»

O senhor Tota já tinha chegado.

- Senhor Tota, é necessário substituto para a loja oito.
O rapaz coitado só tem um rim
e a acartar, a acartar, tem o outro doente.
Pediu-me para lhe pedir, bem... agora era preciso...
precisava de algum dinheiro para a estreptomicina...
bem, é claro, trata-se de uma vida...

«Mas em que é que ele se meteu?
É a fazenda que tem bacilos?
Não se estejam a rir, é claro que não tem bacilos,
mas isto aqui também não é nenhum saco roto;
O senhor não sabe? O senhor agora que é sócio não sabe?
Então se sabe por que é que não lhe disse?»

Bem, o rapaz é ainda muito novo:
e assim, só com um rim, a acartar, a acartar...
O senhor Tota compreende, sim, os fardos são pesados...
Está bem, senhor Tota, pronto está bem...
Não é nada comigo,
eu ainda tenho os dois, por enquanto...

«Por enquanto?
Não, o senhor não compreende as minhas intenções.
Não é com esmolas que se derruba a miséria;
Deprimir, humilhar o homem nosso semelhante
é deprimir e humilhar a nossa própria dignidade.
E a esmola humilha que a dá e quem a recebe.

Estamos aqui para tratar de negócios
mas sempre lhe direi:

Isto está caótico!
Está tudo caótico!!
São precisas vastas reformas, reformas integrais.
Não se trata agora da estreptomicina
nem do rapaz, coitado, também tenho pena dele
(ele não acarta assim tanto como diz...)
mas como sabe o negócio vai mau.

Um remédio a mais, um remédio a menos, não conta.
O que é necessário, o que é fundamental,
são hospitais, hospitais, muitos hospitais...
Percebe?
Muitos hospitais!!!»

O rapaz morreu.

O senhor Tota ainda não morreu.


Francisco Viana

Tuesday 15 November 2016

O MESMO VALE NÃO VER...


O mesmo vale não ver
que ver só o que se crê.
Entre pensar e fazer,
muita vez se perde o pé.
Nada do que existe pára.
Existir é não parar.
A certeza mais avara
é-o menos que ignorar.
Uma coisa é confiança,
outra é superstição.
Onde a razão mais descansa
é em cansar-se a razão.

Armindo Rodrigues

Saturday 12 November 2016

EU PRESTIDIGITADOR EMÉRITO


Dia de minha visita.
Eu a dizer trivialidades à Maria
e ela a compreender nas entrelinhas.

O Stélio de um lado
o Zeca do outro
e uma vigilante
dupla de gajos
de serviço.

Mas eu prestidigitador emérito
fazia chegar ao seu destino
tesouros de sigilo
em papelinhos
dobrados.

Se um dos execráveis gajos
por acaso me tivesse interceptado
restaria alguém para contar
isto?


José Craveirinha

Tuesday 8 November 2016

GUERNIKAKO ARBOLA*


(A Árvore de Guernica)

Era na Primavera do ano 37
quando cheguei a Guernica.
Ali se fabricavam filtros de máscaras
antigás. Eu devia
- serviço de inspecção - ver que diabo se passava
ou o que não funcionava.
Ali, em Guernica, estavam as novas tropas
de Guipúscoa, e eu devia
- serviço de instrução - ensinar-lhes a humana
protecção que é possível quando com gás atacam.
Tudo me parecia distante. Embora cumprisse
o devido, impossível
era pensar que alguém lançasse um tal ataque.
A frente estava longe. Brilhava o céu ileso.
E é preciso dizer tudo:
havia muito tempo que eu não comia anho,
nem comia pão branco, como ali, na rectaguarda.
Parecia tão fácil a paz! Não se entendiam
a ira e a mentira.
Às vezes ia visitar a nossa árvore de Guernica,
e olhava o azul,
um azul que durou todos aqueles dias,
um vasto azul tranquilo que nada parecia
poder perturbar, Março querido.
Ai, quem diria
que pouco depois de eu partir zumbiria no céu,
no mesmo céu que parecia ileso,
puro de mancha e leve,
o horror de uma morte mecânica e selvagem!
Ai, quem diria!
Ai, di-lo tu se puderes, Guernikako arbola,
di-lo com tua raiz, tuas crianças, teus ramos,
di-lo, se for possível,
diz com a liberdade dos vascos antigos,
com o tremor de folhagem que cobre o país todo
e diz o que somos, ao dizer o que fomos!
Ai, se é possível, di-lo!

Gabriel Celaya
(Tradução de José Bento)

* Guarnikako arbola (que em língua vasca significa «a árvore de Guernica») é um roble junto do qual, desde a Idade Média, os reis de Espanha ou os seus representantes juravam respeitar os fueros que estabeleciam os direitos do povo vasco. Em 26 de Abril de 1937, Guernica foi bombardeada pelas forças franquistas, com a colaboração dos nazis, como confessaria Goering. Morreram nesse ataque cerca de 1. 600 pessoas. O roble ficou intacto. (N. do T.)

Sunday 6 November 2016

AFORISMO



Havia uma formiga
compartilhando comigo
o isolamento
e comendo juntos.

Estávamos iguais
com duas diferenças:
ela não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.

Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rasto
mas não podiam
ajoelhar-nos.


José Craveirinha
(Cela 1)

Thursday 3 November 2016

A GUERRA QUE AÍ VEM


A guerra que aí vem
não é a primeira. Antes dela
houve outras guerras.
Quando a última acabou
houve vencedores e vencidos.
Entre os vencidos o povo baixo
passou fome. Entre os vencedores
passou fome também o povo baixo.

Os de cima dizem: no exército
reina a comunhão do povo.
Se é verdade ou não, ficais a sabê-lo
na cozinha.
Nos corações deve
haver a mesma coragem. Mas
nas marmitas há
comer de duas espécies.

Quando toca a marchar, muitos não sabem
que o inimigo marcha à sua frente.
A voz que os comanda
é a voz do inimigo.
O que fala do inimigo
é ele mesmo o inimigo.

Os de cima dizem:
vai dar à glória.
Os de baixo dizem:
vai dar à cova.

Brecht

Tuesday 1 November 2016

CALABOUÇO


I
Aqui
onde nem um pide nos ouve
a gritar no dialecto nacional dos oprimidos
os mais fantásticos sonhos

construímos
com o invisível material da esperança
a realidade universal dentro
do povo lá fora!

II
Pátria:
por causa de nós os dois
o único alguém a cheirar o cheiro
do seu próprio medo
é o carcereiro.

Pátria:
o nosso próprio receio
leva-nos ao cúmulo da fúria
mas ao carcereiro o próprio medo
fabrica para toda a polícia
o auge do desespero.


José Craveirinha