Saturday 30 March 2024


quando vierem despejar-te aos pés o mundo,
reduziste-te ao pó dos outros.

Miguel Tiago

Wednesday 27 March 2024

Canto Franciscano

Por onde passaste tu,
Que não soubeste passar
Pela sandália do tempo?
Pelo cílio do luar
Pelo cílio do vento
Pelo tímpano do mar
Por onde passaste tu,
Que não soubeste passar?

 
Por onde passaste tu,
Que me ficaste cá dentro?
Tenaz do fogo divino
Irmão pinho ou aloendro,
Por onde passaste tu,
Que me ficaste cá dentro?

 
Pois bem, nos campos da fome
Ou nos caminhos do frio
Se eu encontrasse o teu nome
Lançava-te o desafio
Por onde passaste tu,
Que ficaste cá dentro?

 
Por onde passaste tu,
Pétala viva dos cardos?
Rei das chagas e dos podres,
Por onde passaste tu?
Por onde passaste tu?
Não passaram minhas dores

 
Nascida mãe que não tive
Do pai que nunca terei
E aquilo que sobrevive
É o irmão que não sei
Uma espécie, uma espécie de fogueira
De corpo que me deslumbra
Tudo mais à minha beira
É uma réstia de sombra

 
Por onde passaste tu
Com artelhos de penumbra?
Eis-me, eis-me incendiado
Por não saber perdoar
Meu irmão passa de lado
Ai, eu sei como hei de passar
Meu irmão passa de lado
Eu sei como hei de passar

Ary dos Santos

Sunday 24 March 2024

BONDADE

Ninguém nasce odiando outra pessoa
pela cor de sua pele,
ou por sua origem, ou sua religião.
Para odiar, as pessoas precisam aprender,
e se elas aprendem a odiar,
podem ser ensinadas a amar,
pois o amor chega mais naturalmente
ao coração humano do que o seu oposto.
A bondade humana é uma chama que pode ser oculta,
jamais extinta.

Nelson Mandela

Thursday 21 March 2024

palavras

 eu podia fazer acrobacias,
torcer ou contorcer,
atirá-las ao alto,
buscá-las na listagem finita a que chamam dicionário,
ordená-las genialmente,
ou mesmo algoritmicamente,

e de que vale um som sem o sangue vivo?

escrevo-as com dor, amor, raiva ou estupidez,
grito-as num papel revolucionário,
vomito-as pela caneta da agonia,
mas garanto que cada letra delas é
...sanguínea.
...autêntica.
...brutal.
...violenta.
...suave.

...real.

Miguel Tiago

Monday 18 March 2024

setembro

eis que torna setembro e a vindima
eis que o sol brilha alto depois do verão
e eis que os jovens
novamente do chão levantam um novo mundo.

esses jovens cuja idade não importa
que nas mãos trazem o futuro.

e se pode tardar esse futuro, é certo,
tão certo é que começará em setembro.

Miguel Tiago

Friday 15 March 2024

- sem título -

o meu pensamento afoga-se,
como em água.
porém em tempo.

Miguel Tiago

Tuesday 12 March 2024

Retrato do Herói


Herói é quem num muro branco inscreve
O fogo da palavra que o liberta:
Sangue do homem novo que diz povo
e morre devagar de morte certa.
Homem é quem anónimo por leve
lhe ser o nome próprio traz aberta
a alma à fome fechado o corpo ao breve
instante em que a denúncia fica alerta.
Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo nem mártir nem soldado
Mas apenas por último indefeso.
Homem é quem tombando apavorado
dá o sangue ao futuro e fica ileso
pois lutando apagado morre aceso.
José Carlos Ary dos Santos

Saturday 9 March 2024

trovões de guerra

é um corpo tombado no chão,
e alguém debruçado sobre a morte,
é um soldado feito ladrão,
ao longe,uma criança de arma na mão.

da janela próxima, um grito de revolta, um choro de lamento,
ao longe um milhão de lágrimas de tormento.

matam gente estes trovões e as almas torturadas ficam aprisionadas nos caixões.

Miguel Tiago

Friday 8 March 2024

Mulher, levanta-te e luta…luta!


Mulher,
Tu que contas até ao último cêntimo a magra pensão de reforma sujeita a cortes e recortes, e que miras o seu sorriso esquálido deixando escorrer pelos seus dentes podres o sangue suor e lágrimas da tua fugidia vida
Tu que depois dos cravos de Abril ouviste dizer com espanto que tinhas vivido acima das tuas possibilidades, que eras burra e tinhas falta de civismo por não deixar o Governo governar
Tu que nunca leste livros cor de rosa, mas sabes a importância da palavra fome, palavra que conheces bem, por dentro e por fora,
Mulher,
Tu que ouviste dizer com espanto que o aumento do salário mínimo prejudicaria o emprego
Tu que todos os dias te confrontas com o medo de perder o emprego, que o desemprego já bateu à porta do vizinho e tu estás na calha
Tu que tens um filho jovem a contas com uma taxa de desemprego jovem equivalente ao dobro da taxa normal
Tu que te amontoas nas três divisões da casa com a família do teu filho sem filhos que a vida está pelas ruas da amargura
Mulher,
Tu que viste ser-te retirado o subsídio de desemprego e o abono de família
Tu que aguardaste horas junto da maca num corredor do Hospital até receberes o último suspiro do teu pai com a vida macerada por este pesadelo que o 25 de Abril não lhe reservava
Tu que contaste até ao último cêntimo para arranjar dinheiro com que comprar os cadernos para a escola da tua filha mais nova
Tu que tiveste de recorrer à caridade pública e ir almoçar o pão que o diabo amassou no refeitório onde desaguam os restos dos novos milionários
Tu que viste empobrecer o teu país para pagar uma dívida que não era tua mas dos corruptos que a governam
Tu que ouves constantemente falar nos quase três milhões de pobres e excluídos que o país tem
Mulher,
Tu que vês diminuir diariamente o número de cidadãos portugueses
Tu que vês diminuir o número de crianças
Tu que foste ao aeroporto despedir-te do teu filho que emigra para longes terras em busca do Futuro que esteve ao alcance da sua mão.
E que é mais um número nos cerca de 50% jovens emigrantes
Tu que vês aumentar a pobreza infantil e juvenil
Tu que vês a Pátria em Perigo
Mulher,
Tu que tanto deves ao 25 de Abril
Levanta-te e luta…luta!

Wednesday 6 March 2024

gava

se existisse um espelho, no lugar da lua,
a terra toda estremeceria.
e quem sabe não são os mares,
esse manto salino que a cobre,
as lágrimas caídas
de quem pariu inadvertidamente traição?

Miguel Tiago

Sunday 3 March 2024

ao povo soviético

quando viste o teu país destroçado,
as mulheres perdidas, os homens devastados,
quando viste o teu povo vergado, rastejando,
e chamaste a ti a força escondida do Ser Humano,
soubeste o preço em sangue da revolta,
da conquista do pão, cujo trigo em tua terra,
em teu trabalho ia crescendo.

soubeste o custo fatal da audácia,
e nos teus olhos brilharam os sonhos de todos os explorados,
dos corações e dos punhos agrilhoados.

quando empunhaste as armas da coragem e levantaste o rosto à vitória,
sabia-la longínqua, porém incontornável,
como o destino das aves que migram, sempre inexorável.
mesmo que uma, duas, dez ou vinte, tombem no caminho para a glória.

e tu tombaste, irmão,
todavia
a tua força é perpétua,
não como a onda, mas como a maré.

mesmo sob as garras das bestas, das águias cobardes,
levaste mais alto a bandeira vermelha,
do que soubera possível a soma até aí de toda a dignidade,

se alguma coisa perdeste nessa guerra,
não foi a vida, irmão,
foi a prisão.

para que possamos hoje, como então,
dizer não.

e abrir de verdade as portas da liberdade.

Miguel Tiago

Friday 1 March 2024

ao povo português

vencemos a fome,
vencemos o esforço e o suor,
a dor e o cansaço,
vencemos as obrigações,
as prisões.
vencemos os fascistas,
as torturas as censuras,
vencemos março, fizemos Abril.
não ficámos fechados
como quiseram os oportunistas,
antes abraçados
enchemos as ruas nunca assim vistas.

abrimos a golpes de machado o nosso futuro.

mas já antes viajámos, cortámos as vagas furiosas,
vencemos o mar,
cumprimos destinos,
fomos personagem de epopeia,
vencemos o vento da história que leva a poeira.

e hoje resta-nos vencer em terra,
fazer o destino acontecer,
para ver o nosso cravo crescer.

Miguel Tiago