Sunday 30 November 2014

ALEGORIA FLORAL


Um dia em que a mulher nasça do caule da roseira
que cresce no quintal; ou um dia em que a nuvem
desça do céu para vestir de névoa os seus
seios de flor: seguirei o caminho da água nos
canteiros que me levam ao caule, e meter-me-ei
pela terra em busca da raiz.

Nesse dia em que os cabelos da mulher se
confundirem com os fios luminosos que o sol
faz passar pela folhagem; e em que um perfume
de pólen se derramar no ar liberto da névoa:
procurarei o fundo dos seus olhos, onde corre
uma transparência de ribeiro.

Um dia, irei tirar essa mulher de dentro da flor,
despi-la das suas pétalas, e emprestar-lhe o véu
da madrugada. Então, vendo-a nascer com o dia,
desenharei nuvens com a cor dos seus lábios, e
empurrá-las-ei para o mar com o vento brando
da sua respiração.

Depois cobrirei essa mulher que nasceu da roseira
com o lençol celeste; e vê-la-ei adormecer, como
um botão de rosa, esperando que a nuvem desça
do céu para a roubar ao sonho da flor.



Nuno Júdice

Thursday 27 November 2014

AMOR SEM TRÉGUAS


É necessário amar,
qualquer coisa, ou alguém;
o que interessa é gostar
não importa de quem.

Não importa de quem,
nem importa de quê;
o que interessa é amar
mesmo o que não se vê.

Pode ser uma mulher,
uma pedra, uma flor,
uma coisa qualquer,
seja lá o que for.

Pode até nem ser nada
que em ser se concretize,
coisa apenas pensada,
que a sonhar se precise.

Amar por claridade,
sem dever a cumprir;
uma oportunidade
para olhar e sorrir.

Amar como o homem forte
só ele sabe e pode-o;
amar até à morte,
amar até ao ódio.

Que o ódio, infelizmente,
quando o clima é de horror,
é forma inteligente
de se morrer de amor.

António Gedeão

Monday 24 November 2014

@


Gostava de morar na tua pele
desintegrar-me em ti e reintegrar-me
não este exílio escrito no papel
por não ser carne em tua carne.

Gostava de fazer o que tu queres
ser alma em tua alma em um só corpo
não o perto e o distante entre dois seres
não este haver sempre um e sempre o outro.

Um corpo noutro corpo e ao fim nenhum
tu és eu e eu sou tu e ambos ninguém
seremos sempre dois sendo só um.

Por isso esta ferida que faz bem
este prazer que dói como outro algum
e este estar-se tão dentro e sempre aquém.


Manuel Alegre

Friday 21 November 2014

A propósito da doença de um poderoso estadista


Se este homem insubstituível franze o sobrolho
dois reinos periclitam.
Se este homem insubstituível morre
o mundo inteiro se aflige como a mãe sem leite para o filho.
Se este homem insubstituível ressuscitasse ao oitavo dia
não acharia em todo o império uma vaga de porteiro.

Brecht

Tuesday 18 November 2014

*


Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias

rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistira à moldura
do tempo. De noite, os rapazes deitaram-se às baías

atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:

o verão desarruma os sentimentos.


Maria do Rosário Pedreira

Saturday 15 November 2014

Querem o céu


Querem o céu, a mística mansão
da alma.
E, se estivessem lá,
queriam a terra, a sórdida morada
da raiz.
Mas é o céu que lhes diz
Eternidade,
Verdade,
Santidade
e descanso.

Assim se pode mistificar
A preguiça,
O pecado,
A mentira
e a transitória vida natural.

O grande tecto azul, porém, não dá sinal
de acolher o aceno.
Afaga as nuvens, e da luz solar
faz o dia maior ou mais pequeno.

Miguel Torga

Wednesday 12 November 2014

E por vezes


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira

Sunday 9 November 2014

A ILHA DOS NAVIOS PERDIDOS


Aqui é a ilha dos navios perdidos,
dos navios abalroados, afundados
nos naufrágios...
Esta é a ilha perdida nos mapas,
perdida no mar dos sargaços;
este é o mar das Tormentas,
das tormentas desta vida,
onde há só tempestades e agoiros;
o céu
é esta noite negra sem limites
onde não vive um astro, uma nuvem ou uma asa;
a terra é esta,
os cascos oscilantes
dos mil navios perdidos:
Naus da Índia,
barcos piratas dos moiros,
fragatas e caravelas,
navios dos Corte-Reais
onde jazem insepultos
os heróis mais verdadeiros
e os sonhos mais colossais.
- Nos mastros desmantelados
flutuam,
rotos e desbotados,
estandartes imperiais,
e nos porões arrombados,
nos cofres de segredos inúteis,
dormem os tesoiros arrancados
a todos os orientes.

Não há grandeza que baste
quando a desgraça é tamanha!...

Joaquim Namorado

Thursday 6 November 2014

À avó


Ficou vazio o teu lugar à mesa. Alguém veio dizer-nos
que não regressarias, que ninguém regressa de tão longe.
E, desde então, as nossas feridas têm a espessura
do teu silêncio. Sob a tua cadeira, o tapete
continua engelhado, como à tua ida.
Provavelmente ficará assim para sempre.

No outro Natal, quando a casa se encheu por causa
das crianças e um de nós ocupou a cabeceira,
não cheguei a saber
se era para tornar a festa menos dolorosa,
se para voltar a sentir o quente do teu colo.


Maria do Rosário Pedreira

Monday 3 November 2014

Muitas coisas aumentarão com a guerra


Muitas coisas aumentarão com a guerra.
Aumentarão
as posses dos poderosos
e a pobreza dos que nada têm
os discursos dos governantes
e o silêncio dos governados.


Brecht

Saturday 1 November 2014

Ir e vir


O vento hoje sopra do Norte
Como sabem se chama Nortada
Mas não sabem que no mar alto
Vento e geada cortam à facada
Risca a cara e de que maneira
Risca tudo que encontra na frente
Vai o barco cheiinho de gente
Vai o barco chamado traineira

ir e vir ao mar...

Chegado ao mar alto, lá fora da costa
Deita ao mar chalandra e chalandreiro
Pega numa ponta da rede e a traineira
Dá volta inteira
Peixe vivo fica lá no meio, fica tudo cheio
De peixe miúdo, de peixe graúdo
E de esforço, de suor
De trabalho d'um raio,
R'ais parta a vida do pescador

Puxa a rede alador...

Fica a traineira bem carregadinha
De faneca, carapau e sardinha
Vira o leme já o sol vai alto
Já as mulheres estão em sobressalto
Chega à costa e vende-se o peixe
E não há nada que a fábrica deixe
E as conservas vão p'ró estrangeiro
É negócio, é negócio rijo
Mas a vida do pescador é sem descanso
E sem dinheiro

Sem descanso e sem dinheiro...

Isto assim é que não está certo
A gente assim não pode viver
A gente nem ganha p'ra comer
Nem tem descanso
O mar enrola a areia
E nos andam a enrolar
Calma aí seu gatuno ladrão, seu armador
Porque vai é parar tudo
Nós vamos é já p'ra greve
E não há ninguém que nos leve

A greve é nossa arma...


João Loio