Saturday 27 February 2010

Prelúdio

Reteso as cordas desta velha lira,
tonta viola que de mão em mão
se afina e desafina, e donde ninguém tira
senão acordes de inquietação.

Chegou a minha vez, e não hesito:
quero ao menos falhar em tom agudo.
Cada som como um grito
que no seu desespero diga tudo.

E arrepelo a cítara divina.
Agora ou nunca - meu refrão antigo.
O destino destina,
mas o resto é comigo.


Miguel Torga

Wednesday 24 February 2010

Não passarão

Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
entre o sangue vertido
e o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
de traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
não morre um povo!

Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
as forças que te querem jugular
não poderão passar
sobre a dor infinita desse não
que a terra inteira ouviu
e repetiu:
Não passarão!


Miguel Torga

Sunday 21 February 2010

Depoiamento

Deponho no processo do meu crime.
(Sou testemunha
e réu
e vítima
e juiz).
Juro
que havia um muro,
e na face do muro uma palavra a giz.
Merda! - lembro-me bem...
- Crianças... - disse alguém
que ia a passar.
Mas voltei novamente a soletrar
o vocábulo indecente,
e de repente,
como quem adivinha,
numa tristeza já de penitente,
vi que a letra era minha...

Miguel Torga

Thursday 18 February 2010

Viagem

Aparelhei o barco da ilusão
e reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
o mar...
(Só nos é concedida
esta vida
que temos;
e é nela que é preciso
procurar
o velho paraíso
que perdemos).

Prestes, larguei a vela
e disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
a revolta imensidão
transforma dia a dia a embarcação
numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
o que importa é partir, não é chegar.


Miguel Torga

Monday 15 February 2010

Algumas perguntas a um "Homem bom"

Bom, mas para quê?
Sim, não és venal, mas o raio
que sobre a casa cai também
não é venal.
Nunca renegas o que disseste.
Mas que disseste?
És de boa fé, dás a tua opinião.
Que opinião?

Tens coragem.
Contra quem?
És cheio de sabedoria.
Para quem?
Não olhas aos teus interesses.
Aos de quem olhas?
És um bom amigo.
Sê-lo-ás do bom povo?

Escuta pois: nós sabemos
que és nosso inimigo.
Por isso vamos
encostar-te ao paredão.
Mas em consideração
dos teus méritos e das tuas qualidades
escolhemos um bom paredão
e vamos fuzilar-te com boas balas
atiradas por bons fuzis
e enterrar-te com uma boa pá
debaixo da terra boa.

Bertold Brecht

Friday 12 February 2010

HOSSANA!

Junquem de flores o chão do velho mundo:
vem o futuro aí!
Desejado por todos os poetas
e profetas
da vida,
deixou a sua ermida
e meteu-se a caminho.
Ninguém o viu ainda, mas é belo.
É o futuro...

Ponham pois rosmaninho
em cada rua,
em cada porta,
em cada muro,
e tenham confiança nos milagres
desse Messias que renova o tempo.
O passado passou.
O presente agoniza.
Cubram de flores a única verdade
que se eterniza!

Miguel Torga

Tuesday 9 February 2010

PICASSO


Outro pintor das grutas de Altamira
solta os bisontes da imaginação.
Com as mãos selvagens de Vulcano, atira
raios e setas de renovação.

Outro filho da Ibéria
restitui a matéria
às suas formas simples, virginais.
Formas da infância que se não perdeu
neste chão europeu
de velhos e cansados rituais.

Miguel Torga

Saturday 6 February 2010

Prospecção

Não são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
universal riqueza
do homem que resolve a solidão:
o tesoiro sagrado
de nenhuma certeza,
soterrado
por mil certezas de aluvião.

Cavo,
lavo,
peneiro,
mas só quero a fortuna
de me encontrar.
Poeta antes dos versos,
e sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.


Miguel Torga

Wednesday 3 February 2010

VOSSOS NOMES


No chumbo, no terror, na morte, com sangue escrevo,
Alfredo e Catarina,
vossos nomes.

Na pedra, no ácido, neste branco muro escrevo,
Humberto e Militão,
vossos nomes.

Nas trevas, no medo, na raiz da aurora, escrevo,
Maria e Lourenço,
vossos nomes.

No sonho, nos ventos, na flor do trigo escrevo,
Pedro e Guilherme,
vossos nomes.

No aço das duras tarefas, no relâmpago escrevo,
Álvaro e Rui,
vossos nomes.

No amor, na cólera, na fome desta ave escrevo,
Virgínia e António,
vossos nomes.

No sol que levamos, na verde esperança escrevo,
Paula e Dinis,
vossos nomes.

No riso, nas lágrimas, no coração da pátria escrevo
e semeio
vossos nomes.

No ventre em flor da minha amada semeio, escrevo
e multiplico
vossos nomes.
Papiniano Carlos

Monday 1 February 2010

Ameaça de morte

Não basta ter-me dado nos meus versos:
pedem a carne e a pele, os inimigos.
Os olhos, dois postigos
de olhar o mundo sem ninguém me ver,
querem-nos entaipados;
e quebrados
os braços, que eram ramos a crescer.

Luto, digo que não, peço socorro,
mas saiu-me ao caminho uma alcateia.
Lobos da liberdade alheia
que me seguem os passos hora a hora,
sem que eu possa sequer adivinhar,
na paisagem de medo tumular,
qual deles salta primeiro e me devora.


Miguel Torga