Wednesday 30 November 2022

EPOPEIA

 
Não mais a África
da vida livre
e dos gritos agudos da azagaia!
Não mais a África
de rios tumultuosos
- veias intumescidas dum corpo em sangue!

Os brancos abriram clareiras
a tiros de carabina.
Nas clareiras fogos
arroxeando a noite tropical.

Fogos!
Milhões de fogos
num terreno em brasa!

Noite de grande lua
e um cântico subindo
do porão do navio.
O som das grilhetas
marcando compasso!

Noite de grande lua
e destino ignorado!...


Foste o homem perdido
em terras estranhas...

No Brasil
ganhaste calo nas costas
nas vastas plantações do café!
No Norte
foste o homem enrodilhado
nas vastas plantações do fumo!

Na calma do descanso nocturno
só a saudade da terra
que ficou do outro lado...
- só as canções bem soluçadas
dum ritmo estranho!...


Os homens do norte
ficaram rasgando
ventres e cavalos
aos homens do sul!

Os homens do norte
estavam cheios
dos ideais maiores
tão grandes
que tudo foi um despropósito!...

Os homens do norte
os mais lúcidos e cheios de ideias
deram-te do que era teu
um pedaço para viveres...
Libéria! Libéria!
Ah!
os homens nas ruas da Libéria
são dollars americanos
ritmicamente deslizando...

Quando cantas nos cabarés
fazendo brilhar o marfim da tua boca
é a África que está chegando!

Quando nas Olimpíadas
corres veloz
é a África que está chegando!

Segue em frente
irmão
Que a tua música
seja o ritmo de uma conquista!

E que o teu ritmo
seja a cadência de uma vida nova!

... para que a tua gargalhada
de novo venha estraçalhar os ares
como gritos agudos de azagaia!


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo»)

Sunday 27 November 2022

sem título

este cavalo-marinho
que não desiste
de galopar a vasta estepe. 
 
Miguel Tiago

Thursday 24 November 2022

CANTO DO OBÓ


O sol golpeia as costas do negro
e os rios de suor ficam correndo.

Ardor!

O machim golpeia o pau
e os rios de seiva escorrendo.

Ardor!

Os olhos do branco
como chicotes
ferem o mato que está gritando...

Só o água sussurrantemente calmo
corre prao mar

tal qual a alma da terra!


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo»)

Monday 21 November 2022

EXORTAÇÃO


Negro
para quem a horas são sol e febre
que colhes
nesse ritmo de guindaste.

Negro
para quem os dias são iguais
que respeitas teu patrão e senhor
como água que mexe o engenho.

Negro!
Levanta os olhos prao sol rijo
e ama a tua mulher
na terra húmida e quente!


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo»)

Friday 18 November 2022

NEGRO DE TODO O MUNDO


O som do gong
ficou gritando no ar
que o negro tinha perdido.

Harlem! Harlem!
América!
Nas ruas de Harlem
os negros trocam a vida por navalhas!

América!

Nas ruas de Harlem
o sangue de negros e de brancos
está formando xadrez.

Harlem!
Bairro negro!
Ring da vida!


Os poetas de Cabo Verde
estão cantando...

Cantando os homens
perdidos na pesca da baleia.
Cantando os homens
perdidos em aventuras da vida
espalhados por todo o mundo!

Em Lisboa?
Na América?
No Rio?
Sabe-se lá!...

- Escuta.
É a Morna...

Voz nostálgica do cabo-verdiano
chamando por seus irmãos!

Nos terrenos do fumo
os negros estão cantando.

Nos arranha-céus de New-York
os brancos macaqueando!

Nos terrenos da Virgínia
os negros estão dançando.

No show-boat do Mississipi
os brancos macaqueando!

Ah!
Nos estados do sul
os negros estão cantando!

A tua voz escurinha
está cantando
nos palcos de Paris.
Folies Bergères!

Os brancos estão pagando
o teu corpo
a litros de champagne.
Folies Bergères!

Londres-Paris-Madrid
na mala das viagens...

Só as canções longas
que estás soluçando
dizem da nossa tristeza e melancolia!

Se fosses branco
terias a pele queimada
das caldeiras dos navios
que te levam à aventura!

Se fosses branco
terias os pulmões cheios
do carvão descarregado
no cais de Liverpool!

Se fosses branco
quando jogas a vida
por um copo de whisky
terias o teu retrato no jornal!

Negro!


Na cidade da Baía
os negros
estão sacudindo os músculos.

Ui!
Na cidade da Baía
os negros
estão fazendo macumba.

Oraxilá! Oraxilá!

Cidade branca da Baía.
Trezentas e tantas igrejas!

Baía...
Negra. Bem negra!
Cidade de Pai de Santo.

Oraxilá! Oraxilá!


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo»)

Tuesday 15 November 2022

O MAR


A voz branca que está no mato
perde-se na imensidão do mar.
Lá vai!
O sol bem alto
é uma atrapalhação de cor
- Abacaxi sàfu nona
carregozinho do barco...

Um tubarão passando
é um risco de frescura.
Lá vai!

O barco deslizando
só com a vontade livre e certa do negro
lá vai!...


Francisco José Tenreiro

(«Ilha de Nome Santo»)

Saturday 12 November 2022

DUAS QUADRAS


Negas a escola à criança
p'ra toda a vida ser cega...
e ter sempre confiança
em quem a vista lhe nega.

Quem trabalha e mata a fome
não come o pão de ninguém;
mas quem não trabalha e come,
come sempre o pão de alguém.

António Aleixo

Wednesday 9 November 2022

Interrogatório


- Fala! A Dor lhe grita (impuro
seu grito branco que de rastos medra)

- Nunca! Quero quebrar de corpo duro
como as estátuas de pedra.

Luís Veiga Leitão

Sunday 6 November 2022

estética do domínio

quando Jenner descobriu o poder de inocular organismos com agentes infecciosos enfraquecidos estava a salvar a humanidade de pragas desnecessárias. o capitalismo aprendeu os princípios da vacina: hoje já não nos esconde a verdade, faz dela filmes de sucesso, êxitos de bilheteira onde pagamos para aprender como funciona a bolsa de valores, o mercado financeiro, a exploração dos diamantes em África, como funcionam as farmacêuticas, as empresas de tabaco, enquanto comemos umas pipocas.

ao jantar, com sorte ainda vemos umas bombas a destruir uma escola ou duas no noticiário.

o agente infeccioso, enfraquecido - porque é diferente aprender sobre diamantes de sangue a comer pipocas do que a levar chicotadas; porque é diferente ver uma criança a morrer de fome do que não ter como alimentar um filho -, entra-nos pelo sangue adentro.

doses homeopáticas de verdade. eis a vacina contra a acção, a imunização da revolta e a estetização da miséria. 
 
Miguel Tiago


Thursday 3 November 2022

círculo

estes versos não fazem falta nenhuma,
não têm destino de ser cimento das almas partidas 
nem podem ser fogo de artifício a abrir-se em flores
na alegria de uma noite de verão,
são o que não falta 
apesar de faltar verdade 
e serem verdade 
as letras 
não destes, mas de todos os versos do mundo 
que são verdade
por não fazerem falta. 

Miguel Tiago

Tuesday 1 November 2022

Pergunto

 
esta ferida fado
aberta
quantas cicatrizes deixará
na vida de um povo
um dia que a veja com os olhos do futuro. 
 
Miguel Tiago