Wednesday 30 November 2011

Expulso, e com razão


Eu cresci como filho
de gente abastada. Os meus pais puseram-me
um colarinho ao pescoço e criaram-me
nos costumes de ser servido
e ensinaram-me a arte de mandar. Mas
quando já era crescido e olhei à minha roda,
não me agradou a gente da minha classe,
nem o mandar nem o ser servido.
E eu abandonei a minha classe e juntei-me
à gente pequena.

Assim
criaram eles um traidor, educaram-no
nas suas artes, e ele
atraiçoa-os ao inimigo.

Sim , eu divulgo segredos. Entre o povo
estou eu e explico
como eles enganam, e predigo o que vai vir, pois eu
estou iniciado nos seus planos.
O latim dos seus padres corruptos
traduzo-o palavra a palavra para a língua comum,
e então se descobre que é tudo pantomina.
A balança das sua justiça
tiro-a pra baixo e mostro os pesos falsos.
E os seus informadores vão dizer-lhes
que eu estou com os roubados que conjuram
a revolta.

Admoestaram-me e tiraram-me
o que ganhei com o meu trabalho. E quando eu não melhorei,
deram-me caça, porém
já só havia
escritos em minha casa, que descobriam
os seus conluios contra o povo. E assim
perseguiram-me com um mandato de captura
que me acusava de opiniões baixas, isto é:
de opiniões dos de baixo.

Aonde chego, fico marcado
pra todos os possidentes, mas os que nada têm
lêem o mandato e
dão-me abrigo.
«A ti» - ouço eu dizer -
«Expulsaram-te eles, e
com razão».


Bertold Brecht

Sunday 27 November 2011

Estou mais perto de ti porque te amo


Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
...
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.

Joaquim Pessoa

Thursday 24 November 2011

Edital


Já estão a funcionar os moinhos da morte,
prontos,
oleados,
com motores novos e peças de reserva.

A instrução militar é muito vagarosa
e é urgente inventar um novo método.
Ainda não há soldados bastantes este verão,
é preciso incorporar mais cedo.

Não é possível perder tempo, ouviram!
Os moinhos da morte estão prestes a iniciar a sua tarefa,
os depósitos de bombas estão repletos,
as rampas de lançamento distribuídas pelos pontos estratégicos.
Tudo está a postos para o próximo dia M.

Os soldados, porém, são ainda insuficientes.

É necessário acabar com os cursos de Botânica,
de Arqueologia, Belas-Artes e Direito Civil.

É preciso queimar os escritos de Malthus,
destruir o método de Ogino-Knaus,
fuzilar um ou outro poeta recalcitrante.

Não ouvem as velas dos moinhos cortando a atmosfera
nos últimos, definitivos, ensaios?

É necessário inventar uma gigantesca correia-sem-fim
que produza diariamente milhares de soldados,
que taylorize o exército e bata os recordes de produção.

Sábios, estudantes, estadistas, pais de família,
homens e mulheres de boa vontade,
onde quer que habitem
seja qual for o vosso trabalho,
parem de perder tempo, de tomar chá,
de jogar o xadrez, a canasta, a bisca lambida,
parem de ter ócios, ler jornais, fazer ginástica:
atendam este apelo desesperado;
dediquem-se à solução deste problema.

As Escolas de Guerra vão diminuir de dois anos o seu curso.
Os moinhos estão prontos.

Não querelem,
não discutam a Arte pela Arte,
não frequentem exposições:
transmitam-nos ideias - nada é desaproveitável.
A mais humilde sugestão,
a mais aparentemente inútil,
pode ser a faísca reveladora do Grande Acontecimento.

Na doença ou na saúde,
na febre delirante, no banho quente,
na praia, no consultório médico,
nas salas de espera, na paragem dos eléctricos,
trabalhem sem descanso,
tentem,
contribuam.

Não leiam livros, não ouçam música,
não pintem - É UMA ORDEM.
Trabalhem sem hesitação;
o problema é urgente.


Egito Gonçalves

Monday 21 November 2011

Não canto porque sonho


Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
O teu sorriso puro,
A tua graça animal.

Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
somente um bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinha.

Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
Por vê-los nus e suados.

Eugénio de Andrade

Friday 18 November 2011

Notícias do bloqueio


Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contrabando - aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas e granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva

e a esperança reproduz-se.


Egito Gonçalves

Tuesday 15 November 2011

POÉTICA


Quando se nos acabam as palavras,
no momento preciso em que nos fartamos de Saint John Perse
e J.R.J.
(poetas decididamente respeitáveis)
quando vamos olhando as coisas, vivendo entre as coisas
com um amor profundo
e uma melancolia que deve qualificar-se ainda assim de
"profunda sem dúvida",
no instante em que recebemos uma estranha espécie de patada
no peito e as coisas nos correm bem e estamos bem,
quando estamos entre gente e estamos sós,
se estamos sós e todo o mundo está connosco,
se ficamos a olhar um ponto fixo -
há que continuar.
Apesar dos que prefeririam palavras mais tranquilas,
talvez por eles mesmos,
pelo que vale tudo para todos,
pelos que choram e não são ouvidos,
pelo que fazemos juntos, enquanto restem
tantos sofrimentos, tantas decepções -
há que continuar.
Digo: estender o pescoço, cerrar os dentes
e continuar
digam os comemerdas o que quiserem.
Ou para o dizer de uma maneira definitivamente mais clara:
cagar-se na notícia.

Guillermo Rodriguez Rivera

Saturday 12 November 2011

Nova vassalagem


Subitamente os periódicos, a rádio,
propõem virilmente a indignação.

Doloroso é o instante em que a fissura
ameaça a ordem, abala a tradição,
golpeia a calma espessa que sugere
falsamente uma paz.

É preciso de novo, é necessário
confirmar.

Aqui, além, os esteios renem.
Falam do tempo, dos seus vários comércios;
pesam o valor do susto que os ronda.

Redigem o impresso, a anestesia. Assinam
em rigorosa ordem hierárquica.

O telegrama parte.


Egito Gonçalves

Wednesday 9 November 2011

LOUVOR DO REVOLUCIONÁRIO


Quando a opressão aumenta
muitos se desencorajam
Mas a coragem dele cresce.
Ele organiza a luta
pelo tostão do salário, pela água do chá
e pelo poder no Estado.
Pergunta à propriedade:
Donde vens tu?
Pergunta às opiniões:
A quem aproveitais?

Onde quer que todos calem
ali falará ele
e onde reina a opressão e se fala do Destino
ele nomeará os nomes.

Onde se senta à mesa
senta-se a insatisfação à mesa
a comida estraga-se
e reconhece-se que o quarto é acanhado.

Pra onde quer que o expulsem, para lá
vai a revolta, e donde é escorraçado
fica ainda lá o desassossego.


Bertold Brecht

Sunday 6 November 2011

ELOGIO DA DIALÉCTICA


A injustiça avança hoje a passo firme.
Os tiranos fazem planos para dez mil anos.
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são.
Nenhuma voz além da dos que mandam.
E em todos os mercados proclama a exploração:
isto é apenas o meu começo.
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem:
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos.

Quem ainda está vivo nunca diga: nunca.
O que é seguro não é seguro.
As coisas não continuarão a ser como são.
Depois de falarem os dominantes
falarão os dominados.
Quem pois ousa dizer: nunca?
De quem depende que a opressão prossiga? De nós.
De quem depende que ela acabe? Também de nós.
O que é esmagado que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, quem há aí que o retenha?
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.
E nunca, será: ainda hoje.


Bertold Brecht

Thursday 3 November 2011

Quem é o teu inimigo?


Ao que tem fome e te rouba
o último pedaço de pão, chama-lo teu inimigo.
Mas não saltas ao pescoço
do teu ladrão que nunca teve fome.


Bertold Brecht

Tuesday 1 November 2011

Fábula


O lobo foi ter
com a galinha
e disse-lhe:

«Devíamos conhecer-nos
melhor para vivermos
com amor e confiança»

A galinha achou bem
e foi com o lobo.

Foi por isso que as suas
penas ficaram espalhadas
por todo o lado.


Bertold Brecht