Saturday 30 April 2022

sem título

sonhei que via terra
daqui do convés 
rente ao mar
mas o gajeiro
lá da gávea
não gritou.
 
Miguel Tiago

Wednesday 27 April 2022

sem título

descobre o manto
não é ignorância
é ocultação
habitua docemente os olhos
ao brilho
educa docemente a alma 
para a revolução
erguido e clarividente
nada peças docemente
reclama apenas o que é teu 
com toda a força
de cada mão.
 
Miguel Tiago

Sunday 24 April 2022

tempos modernos

açaima a poesia
porque os versos são potencialmente perigosos
trá-la sempre amordaçada
pelo top ten 
de romances dóceis 
de auto-ajuda
e já se fazem comprimidos para os revoltados
para os infelizes
que afinal são apenas alvo de uma depressão 
de geração espontânea e que nada deve ao capitalismo
que além de vender entorpecimento em cápsula 
mediante receita 
também ajuda os autores de auto-sorrisos 
a tristeza é o negócio do século
e a solidão é o sintoma da epidemia silenciosa
que nos aliena de nós próprios e nos expropria 
da mais poderosa propriedade: a inquietação
felizmente, restar-nos-ão sempre as redes sociais
como placebo em que o princípio activo é a publicidade 
do lado direito do ecrã.
 
Miguel Tiago

Thursday 21 April 2022

sem título

enquanto o fumo do cigarro pensa
eu vaporizo-me de um plasma aceso
tirar uma pausa
sem ter de fazer desconto de tempo
ao mesmo tempo que passa devagar
por entre a chuva lá fora o tempo
essa repetição em aceleração uniforme 
num movimento 
que 
não faço ideia 
se se parece mais com o do projéctil 
se com um linear
tendo porém por certo porque li num livro 
que é afectado pela gravidade
pela gravidade das coisas
e pela gravidade dos actos 
não há tempo que apague o passado 
não há tempo que leve o presente
todas as marcas são para sempre 
podemos não trazer na pele todas as cicatrizes
ou tatuagens
podemos não carregar as memórias
e ir largando por aí o lastro sobre as costas dos outros
podemos andar com relógio de bolso
sem hora certa
pendente de uma corrente
com azebre ou verdete
e nem por isso o porvir será livre de todas as nuvens
que já cruzaram o céu.
 
Miguel Tiago

 

Monday 18 April 2022

sem título

dias pequenos horas largas
a pousar no outono
a inesquecível melodia
do pôr-do-sol. 

Miguel Tiago

Friday 15 April 2022

sem título

foi inesperado o meu encontro
à mesa com jesus cristo
trazia um ar cansado
e eu espantado

depois disse-me que aquilo de transformar a água em vinho
era um truque de ilusionismo

e eu pensei
estamos fodidos. 

Miguel Tiago

Tuesday 12 April 2022

pagão

a chama no peito
humores semente
não é asséptico o clamor
da nossa beleza
porque isto de nascer de um ventre
de pele sanguínea
é sempre
um ardor que permanece
tanto nas asas
como no útero
dessa massa lama
se faz gente
que cavalga o mar
sobre o dorso dos monstros marinhos
e sobrevive a si própria
com amor
e nojo

deus, nosso pai, fez-nos à sua imagem.
felizmente saímos à mãe.  

Miguel Tiago

Saturday 9 April 2022

sem título

para onde vão os fantasmas
quando o amor se separa da carne
e o corpo exangue teima em não sucumbir.

Miguel Tiago

Wednesday 6 April 2022

sem título

 este poema não é sobre nós

quando a mão se nos estende
as polpas dos dedos são raízes para as galáxias
cabo que amarra ao ferro
no fundo do mar
iça do meio do peito
a alma segura
pelo estai dos desgraçados
que nunca desistem
de ser cais
da mais deserta embarcação.

Miguel Tiago

Sunday 3 April 2022

sem título

aqui estamos sentados
à beira do planeta
não é azul

afinal

é transparente.

daqui vemos os mares
e os continentes
cumprindo historicamente
o desígnio de conter
e nós alados
jamais nos permitiríamos
correr atrás da nossa cauda
às voltas num astro redondo.

Miguel Tiago

Friday 1 April 2022

sem título

 na floresta as sombras são mais pequenas no inverno

é mais solitária na multidão
a mão estendida do homem ao abandono

o dia espalha-se mais luminoso entre árvores despidas. 

Miguel Tiago