Saturday 30 December 2017

PASSAGEM DO ANO


O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e o seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e que sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade

Wednesday 27 December 2017

PÁTRIA MINHA

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
é minha pátria. Por isso, no exílio
assistindo dormir meu filho
choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
como, por que e quando minha pátria.
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sol e a água
que elaboram e liquefazem a minha mágoa
em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria,
de niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
de minha pátria, de minha pátria sem sapatos
e sem meias, pátria minha
tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
em contacto com a dor do tempo, eu elemento
de ligação entre a acção e o pensamento

Eu fio invisível no espaço de todo o adeus
Eu, o sem Deus!
Tenho-te no entanto em mim como um gemido
de flor; tenho-te como um amor morrido
a quem se jurou; tenho-te como uma fé
sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
e sem pé direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra,
quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi Alfa e Beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
à espera de ver surgir a Cruz do Sul
que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
o não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
lábaro não; a minha pátria é desolação
de caminhos, a minha pátria é terra sedenta
e praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
que bebe nuvem, come terra
e urina mar.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
que um dia traduzi num exame escrito:
«Liberta que serás também»
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
que brinca em teus cabelos e te alisa,
pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
e ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
e pedirei que peça ao rouxinol do dia
que peça ao sabiá,
para levar-te presto este avigrama:
«Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes».

Sunday 24 December 2017

LITANIA PARA O NATAL DE 1967


Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos vir pedir contas do nosso tempo

David Mourão-Ferreira

Thursday 21 December 2017

Há quarenta anos - Vinicius


«1969 é para Vinicius de Moraes um ano "português". Lisboa recebe-o entusiasticamente. aplaudindo-o com o máximo calor»: assim se diz na nota à 4ª edição de «O Operário em Construção e Outros Poemas», publicada em 1975, com selecção e prefácio de Alexandre O'Neill.

É certo que Vinicius tinha passado por cá em finais de 1968, a caminho de Itália, tendo então participado num serão em casa de Amália, onde também estiveram a Natália, o Ary, o Mourão-Ferreira - e desse serão nasceu o disco «Amália/Vinicius».
Mas foi em 1969 que o Poeta nos visitou como queríamos.

Recordemos alguns momentos dessa visita.
No dia 13 de Dezembro de 1969, no Teatro Villaret, em Lisboa, Vinicius - com Baden e Marcinha - realizam o seu segundo (ou terceiro?) espectáculo.
Um espectáculo inesquecível.
A dada altura, Vinicius falou da situação que então se vivia no seu País: no dia anterior, os militares fascistas que, com o apoio dos EUA, ocupavam o poder no Brasil há cinco anos, tinham instaurado o Ato Institucional Nº5 - o sinistro AI5 - que institucionalizava a censura, a repressão, a prisão, a tortura, o assassinato.
E o Poeta falou da tragédia que caíra sobre o seu povo - comparando-a à situação que se vivia em Portugal.
Depois, leu o poema Pátria Minha, que Baden acompanhou dedilhando, no violão, o Hino do Brasil.
Mais tarde - aproximava-se o espectáculo do fim - chegou a notícia (que creio não viria a confirmar-se) de que o Chico teria sido preso.
E o Poeta falou do seu amigo... - enquanto a Marcinha chorava... e o público chorava...
Um espectáculo inesquecível.

Nos dias que se seguiram, o grupo faz mais uns tantos espectáculos - na boite Ad Lib, em Lisboa, e em várias cidades portuguesas: um êxito, em todo o lado.
Vinicius foi, então, muito criticado por alguns... críticos que achavam que poeta não deve fazer poemas para canções e muito menos ir a boite cantar e dizer poemas... enfim, os «argumentos» que, de facto, pretendiam (eles sabiam porquê...) menorizar a qualidade maior da poesia de Vinicius (como, mais ou menos por essa altura, fizeram - e continuam a fazer... - em relação ao nosso Zé Carlos).

A vinda de Vinicius a Portugal, fora antecedida, em Abril de 1969, pela publicação, pela Dom Quixote, do livro acima referido: «O Operário em Construção e Outros Poemas» - que foi, talvez, a primeira, ou uma das primeiras edições portuguesas de poemas de Vinicius.
O livro teve imediato sucesso: ainda nesse ano saiu uma 2ª edição, no ano seguinte, outra... e já lá vão creio que umas dez...
A 4ª edição - a de 1975 - teve enorme vantagem de vir acompanhada por uma «Carta-Prefácio Para Vinicius de Moraes», na qual o O'Neill fala precisamente desse «ano português» de Vinicius.
Trata-se de um texto que - mesmo indo este post já tão longo e com a consciência de que estou a abusar da vossa paciência - não resisto a deixar-vos aqui.

«Amigo:

Quando estiveste, da primeira vez, por aqui dando show, umas granfas (loiras e morenas notáveis, como diria Mestre Carlos, mas ganfas), comentando os preços da boate onde, em duas ou três sessões, te produziste com a tua turma, disseram ou fizeram dizer: «Quem não tem dinheiro, não tem Vinicius.» Vinicius, vícios... não ligues. Olha que elas dispunham de muito bago. Estavam era a ser desajeitadas na maneira de te homenagear. Algumas conheciam de ti o poeta encaixilhado no sério. Charmoso, mas, apesar de tudo, respeitável-respeitoso. Usavam o teu "Soneto do Amor Total" não como tabatière à musique, nem como máquina de pensar, mas como caixinha de arroubos, entre as muitas outras que sempre trazem na malinha, com coisinhas para pôr ou tirar dor de cabeça.
Dessas, uma quantas mostraram-se decepcionadas contigo por teres descido do livro à boate, do soneto ao samba. E fizeram constar a decepção, a ofensa que sentiam. Não ligues. Estavam mordidinhas de inveja perante a quantidade de liberdade que tu, em cada noite, produzias!
Marcus Vinicius, eu vi-te aquém e além palco, con-vivi-tigo. No Alentejo, que agora, mais do que nunca, ai de nós, é um adjectivo, vi-te, convivi-te no teu simplório convívio. Estavas em construção, como sempre não definitivo. Tua felicidade, teu riso mais riso, era entre pessoal amigo.
Há muita gente ainda por aí (tenho medo que aumente!) que de ti o que quer é o catorze, quer dizer o soneto, e rejeita teu outro meio de comunicar, que afinal é o mesmo: tocantar.
Perceba, por uma vez, essa gentalha, que o Vinicius poeta e o Vinicius sambista são da mesma igualha!
São
o operário
em construção.

Abração
Alexandre O'Neill
Lisboa, Nov. 75»



Monday 18 December 2017

NATAL À BEIRA-RIO


É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, à noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

David Mourão-Ferreira

Friday 15 December 2017

CANÇÃO DO MILICIANO RECÉM-CASADO



Tuesday 12 December 2017

NATAL UP-TO-DATE


Em vez da consoada há um baile de máscaras
Na filial do Banco erigiu-se um Presépio
Todos estes pastores são jovens tecnocratas
que usarão dominó já na próxima década

Chega o rei do petróleo a fingir de Rei Mago
Chega o rei do barulho e conserva-se mudo
enquanto se não sabe ao certo o resultado
dos que vêm sondar a reacção do público

Nas palhas do curral ocultam microfones
O lajedo em redor é de pedras da lua
Rainhas de beleza hão-de vir de helicóptero
e é provável até que se apresentem nuas

Eis que surge no céu a estrela prometida
Mas é para apontar mais um supermercado
onde se vende pão já transformado em cinza
para que o ritual seja muito mais rápido

Assim a noite passa. E passa tão depressa
que a meia-noite em vós nem se demora um pouco
Só Jesus no entanto é que não comparece
Só Jesus afinal não quer nada convosco

David Mourão-Ferreira

Saturday 9 December 2017

DIVISA

Olhos, olhai em frente!

É convencer-se a gente
de que tudo o que fica para trás
serve, apenas, de ponto de partida
e nada mais!
São ruínas e as ruínas
lembram as coisas que foram
e já não são.
Mas em frente
há a vastidão inculta e inabitada,
a vastidão que espera e que deseja
alguém.

Em frente!... O que não é
mas que vai ser
por nossas mãos!
Olhos, olhai em frente!

Atrás de nós
há Sodomas inúteis
e Gomorras em brasa!

Álvaro Feijó

Wednesday 6 December 2017

NA TAL


Na tal habitação volto a falar-te
Na tal que já eu-próprio não conheço
Na tal que mais que tálamo era berço
Na tal em que de noite nunca é tarde

Na tal de que por fim ninguém se evade
Na tal a que sei bem que não regresso
Na tal que umbilical cabe num verso
Na tal sem universo que a iguale

Na tal habitação te vou falando
Na tal como quem joga às escondidas
Na tal a ver se tu me dizes qual

Na tal de que eu herdei só este canto
Na tal que para sempre está perdida
Na tal em que o natal era Natal.

David Mourão-Ferreira

Sunday 3 December 2017

A United Fruit Co.

Quando soou a trombeta, estava
tudo preparado na terra
e Jeová repartiu o mundo
entre a Coca-Cola Inc., a Anaconda,
a Ford Motors e outras entidades:
a Compañia Frutera Inc.
reservou para si o mais suculento,
a costa central da minha terra,
a doce cintura da América.
Baptizou de novo as suas terras
como «Repúblicas das Bananas»
e sobre os mortos adormecidos,
sobre os heróis inquietos
que conquistaram a grandeza,
a liberdade e as bandeiras,
estabeleceu a ópera bufa:
alienou os arbítrios,
ofereceu coroas de césar,
desembainhou a inveja, atraíu
a ditadura das moscas,
moscas Trujillo, moscas Tachos,
moscas Carias, moscas Martinez,
moscas Ubico, moscas húmidas
de sangue humilde e melaço,
moscas bêbedas que zumbem
por cima das campas populares,
moscas de circo, sábias moscas
entendidas em tirania.
Entre as moscas sanguinárias
a Frutera desembarca,
nivelando o café e as frutas
nos seus barcos que deslizarão
como bandejas o tesouro
das nossas terras submersas.

Entretanto, pelos abismos
açucarados dos portos,
caíam índios sepultados
no vapor da manhã:
um corpo roda, uma coisa
sem nome, um número caído,
uma raiz de fruta morta
derramada no monturo.

Pablo Neruda

Friday 1 December 2017

NATAL


U
m Deus à nossa medida...
A fé sempre apetecida
de ver nascer um menino
divino
e habitual.
A transcendência à lareira
a receber da fogueira
calor sobrenatural.

Miguel Torga