Wednesday 30 October 2013
ENSAIO DE CÂNTICO NO TEMPLO
Ah, que farto que eu estou da minha
cobarde e velha terra, tão selvagem,
e como gostaria de abalar
para o norte
onde dizem que a gente é
limpa e nobre, culta e rica,
viva, livre, feliz!
Então, na confraria, os irmãos diriam
reprovando: «Como pássaro que deixa o ninho,
assim o homem que deixa o lugar»,
enquanto eu, bem longe, riria
da lei, da sabedoria
antiga desta terra tão ávida.
Porém de que me serve prosseguir um sonho -
aqui hei-de ficar até morrer,
pois cobarde e selvagem também eu o sou,
e além disso amando
com dor desesperada
esta pobre,
suja, triste, desgraçada pátria minha.
Salvador Espriu
Sunday 27 October 2013
O SONÂMBULO E O OUTRO
Durante a noite não pregou olho.
Seguia os passos do sonâmbulo sobre o tecto.
Cada passo, pesado e ôco,
ressoava infindamente num canto
vazio de si próprio.
Fica à janela, esperando
apará-lo nos braços, se viesse a cair.
Mas se o outro o arrastasse na queda?
Era a sombra de um pássaro na parede?
Uma estrela? Era o outro? As suas mãos?
Ouviu-se um baque surdo no pavimento.
Amanhecia.
Abriram-se janelas. Os vizinhos acorreram.
O sonâmbulo descia rapidamente
as escadas de serviço
para acudir àquele que tombara da janela.
Yannis Ritsos
Thursday 24 October 2013
TURNO
primeiro a neve.
depois da última neve
o primeiro filho.
depois das últimas dores de parto
a primeira comunhão.
depois da última porcaria
o primeiro amor.
depois da última palavra
a primeira hipoteca.
depois do último centavo
a primeira guerra mundial.
depois da última advertência
o primeiro fiscal.
depois da última instância
o primeiro clube de futebol de nuremberg.
depois da última camisa
o primeiro auxílio.
depois da última idiotice
o primeiro violino.
depois da última honraria
o primeiro cantar do galo.
depois da última porcaria
por fim
a primeira neve.
Hans Magnus Enzensberger
Monday 21 October 2013
FLORILÉGIO
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
um patrão
Tão longa
procissão,
tão curto
o pão.
Francisco Viana
Friday 18 October 2013
O BICHO
Vi ontem um bicho
na imundície do pátio
catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
não era um gato,
não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Bandeira
Tuesday 15 October 2013
O GLOBO
Para que brinquem com ele como se fosse um balão multicolor.
Para que brinquem e cantem por entre as estrelas.
Ofereçamos o globo às crianças,
entreguemo-lo como uma maçã enorme
como uma bola de pão quente.
Que ao menos por um dia comam até se fartarem.
Ofereçamos o globo às crianças.
Que ao menos por um dia o mundo aprenda a camaradagem,
As crianças tomarão o globo das nossas mãos
e plantarão nele árvores imortais.
Nazim Hikmet
Saturday 12 October 2013
TELEGRAMA DE MOSCOU
Pedra por pedra reconstruiremos a cidade.
Casa e mais casa se cobrirá o chão.
Rua e mais rua o trânsito ressurgirá.
Começaremos pela estação da estrada de ferro
e pela usina de energia eléctrica.
Outros homens, em outras casas,
continuarão a mesma certeza.
Sobraram apenas algumas árvores
com cicatrizes, como soldados.
A neve baixou, cobrindo as feridas.
O vento varreu a dura lembrança.
Mas o assombro, a fábula
gravam no ar o fantasma da antiga cidade
que penetrará o corpo da nova.
A que se chamava
e se chamará sempre Stalingrado
- Stalingrado: o tempo responde.
Carlos Drummond de Andrade
Wednesday 9 October 2013
Cantámos em redor da Estátua
Em multidão
os homens parecem maiores do que são.
Nela,
a nossa voz,
tão rude quando cantamos sós,
parece mais bela.
Num coro de cantar
sai cá para fora
tudo o que há em nós de sol-treva no luar.
(O resto - os sonhos mesquinhos -
fica para a solidão
dos caminhos.)
José Gomes Ferreira
Sunday 6 October 2013
CARTAS NA MESA
Vou pondo cartas
dos meus amigos
sobre esta mesa
de conivência
E, a sós, descubro
que viver só
não é poesia
nem é ciência...
Raul de Carvalho
Thursday 3 October 2013
Todo o dia e toda a noite grunhe
Todo o dia e toda a noite grunhe
em forma de símbolo debaixo do meu quarto
Eh! vizinho porco,
todo o dia de borco
a foçar na terra onde nasceu!
Ensine ao aldeão
a sua lição
de pensar menos no céu
e mais no chão.
(Na terra, camponês,
também há estrelas
que tu não vês...
Mas hás-de vê-las.»
José Gomes Ferreira
em forma de símbolo debaixo do meu quarto
Eh! vizinho porco,
todo o dia de borco
a foçar na terra onde nasceu!
Ensine ao aldeão
a sua lição
de pensar menos no céu
e mais no chão.
(Na terra, camponês,
também há estrelas
que tu não vês...
Mas hás-de vê-las.»
José Gomes Ferreira
Tuesday 1 October 2013
É PRECISO AVISAR TODA A GENTE
É preciso avisar toda a gente
dar notícia informar prevenir
que por cada flor estrangulada
há milhões de sementes a florir.
É preciso avisar toda a gente
segredar a palavra e a senha
engrossando a verdade corrente
duma força que nada detenha.
É preciso avisar toda a gente
que há fogo no meio da floresta
e que os mortos apontam em frente
o caminho da esperança que resta.
É preciso avisar toda a gente
transmitindo este morse de dores
é preciso imperioso e urgente
mais flores mais flores mais flores.
João Apolinário
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