viremos o mar do avesso.
ficam as nuvens por dentro
dos nossos estômagos,
e a saliva tornar-se-á sal
feito de pessoa,
halite humana
hálito salino.
Miguel Tiago
viremos o mar do avesso.
ficam as nuvens por dentro
dos nossos estômagos,
e a saliva tornar-se-á sal
feito de pessoa,
halite humana
hálito salino.
Miguel Tiago
de tantas vozes
as de um mundo inteiro
a que nos sussurra
amizade
é o mais poderoso pilar dos continentes,
e de todos o mares o mais
seguro cais.
Miguel Tiago
eis a luz que de ondas pelas artérias faz dos homens
coração dos pássaros
e estrelas dos olhos das pedras da montanha
lido um verso um verbo um fruto
uma semente nua que no ventre
traz chamas ao vento.
Miguel Tiago
de quantas tempestades terão os cravos de brotar
até romper a crusta de chumbo que nos reveste os pulmões?
Miguel Tiago
os homens de plástico
que podem ser mulheres
e às vezes são cães
são feitos na fábrica da psicopatia
construídos a preceito
no molde da fingida e sempre presente simpatia
mostram os dentes sem qualquer sentimento
para esconder o pensamento
mesmo que sejam mulheres
podem ser cães
os homens de plástico
não são andróides
são filhos da puta
não são máquinas
podem ser mulheres
e na maior parte das vezes são cães
os homens de plástico agradecem a quem lhes dá de comer
e devem-lhes eterna gratidão
como um cão
os homens de plástico são criados de pequeninos
habituados a ter criados para serem criados de alguém
os homens de plástico são todos iguais
podem ser mulheres e muitas vezes são cães
fabricados na linha de montagem sabujo topo-de-gama
fato cintado ou saia fato
a coleira e a trela disfarçadas sob a gravata ou o lenço
ou mesmo escondidos na mama
e sempre à margem da lei sem açaime
que dispensaram ao alfaiate
os homens de plástico seduzem-nos a carne e a alma
o predador atrai a presa
indefesa no meio da lama
humana
o homem de plástico
pode ser mulher
e muitas vezes é cão
e ter-nos-á cerrados na mandíbula
até que em vez de nos foder
o comermos nós com pão
Miguel Tiago
vieram aos montes do outro lado do rio, sobre solas desfeitas,
vieram arrastando as pernas magras pesadas,
vieram em multidões, atravessaram desertos e a sede e a fome e o sol,
vieram nessa marcha longa de mãos dadas, de todos os cantos do mundo, principalmente do poente,
vieram com o mundo nas mãos sem força para segurar um pão
eram escravos,
eram servos,
eram operários,
vieram do mais longe do tempo,
de uma floresta devastada,
de um caminho de ferro
(a perder de vista),
vieram dos campos gelados e dos mares revoltos,
no dorso de um cavalo esquálido,
vieram da máquina,
de uma fábrica, do ruído,
vieram de uma bancada, de um torno,
vieram de enxada,
de enxurrada,
vieram da raiva, das mãos duras e dos olhos tristes,
vieram de longe até chegar aqui.
e quando aqui chegaram fizeram o mundo
que toda a vida tinham esperado de deus.
Miguel Tiago
já os caminhos são sombras
uma ruína no futuro
um castelo
já o abismo nos tomou nos braços
um trapo branco ondula
sobre o terreno sanguíneo das batalhas perdidas
o braço pende
o teu sorriso morreu de uma apneia demasiado longa
e o copo onde guardavas a alma derramou-se
sobre a nudez dos poemas
Miguel Tiago
onde as cinzas descansam esteve aceso o lume
Miguel Tiago