Tuesday 27 December 2016

OLHO-TE DAQUI, MIGUEL...


Olho-te daqui, meu filho, vejo-te brincar com os
pequenos cubos que a tua imaginação rapidamente
transformou em comboio, e interrogo-me:
Que destino é o teu? Que futuro temos nós para te dar?
E haverá futuro com tantos mísseis apontados ao
coração?
Ao interrogar-me assim, imediatamente
me censuro: Como posso eu consentir à roda dos
teus três anos de idade a sombra espessa e
inquieta destas interrogações? Mentir? E como
poderia eu pactuar com a mentira, ocultar esta
inquietação, este medo de te ver crescer num
lugar tão precário como é a terra? Como deixar
de pensar que contigo crescem no mundo milhões
de crianças sem ternura, e que tantas outras morrem
simplesmente de fome? - enquanto os homens,
e quando digo homens tenho em mente os responsáveis
pelos nossos destinos, continuam numa desenfreada
corrida a armamentos cada vez mais dispendiosos e
mortíferos, a construir reactores e centrais que não
tardarão a pôr-nos o lixo nuclear à porta, comprometendo
assim toda a economia do planeta, o seu equilíbrio ecoló-
gico, a sobrevivência das espécies, multiplicando a
angústia, o terror de uma catástrofe atómica, fazendo-se
da vida a negação da própria vida, transformando-se o
homem, esse «prodígio» de que falavam os gregos,
no «monstro» de que fala Pascal.
E tudo isto para manter a mais bárbara, a mais vil,
a mais hipócrita das sociedades - uma sociedade
meramente mercantil, cujo objectivo único é o lucro,
sem qualquer finalidade moral.

Olho-te daqui, Miguel, vejo-te brincar com os
pequenos cubos, juntando-os e empurrando-os,
comboio seguindo viagem para um qualquer lugar
onde se não chegue dilacerado ou amputado
da alegria de o homem se sentir nascer para
um amor novo, uma imaginação nova, distante já,
e vamos dizê-lo com tremendas palavras de
Nietzsche, desse asilo de alienados que
durante tantos anos foi a terra.

Eugénio de Andrade