Thursday 30 January 2020

EU DISSE-TE, MÃE

Eu disse-te, mãe, a minha boca já não sabe
falar de amor. E agora desconheço o caminho
para regressar ao passado. O silêncio deixou
tudo intacto, sem rasto que eu possa seguir.
Mas este silêncio tem feridas, é um território
opaco, um amontoado de sombras. A terra
procura dormir em mim como se desejasse
cantar e possuir-me, tal como quando o vento
abraça as árvores. E eu, que sempre possuí um
coração de luz, começo a ter medo do futuro
porque já não há primaveras nem rios de palavras
que me inundem os olhos. Sei apenas estreitar o
corpo e dar a outra face que agora sangra nomes
e nomes, muitos nomes, que não escondem a
dificuldade de cantar porque os dedos não
estão já iluminados e as vozes florescem em
canções com ritmos mais ferozes. Restam
as doces labaredas da memória e as frias
brincadeiras da infância para ajudar-me a sorrir.
Por isso sei como é pesada a lua e quantas
noites são precisas para fabricar uma nesga
de luz. Mãe, tantas vezes eu quis dizer-te sem
que pudesses ouvir-me: a minha boca já não sabe
falar de amor, não é mais que um pedaço de terra
junto ao mar em busca de equilíbrio para que
não se torne uma ilha, ou o místico caminho
que levou Alfonsina (1) a procurar refúgio
num leito escuro de estrelas apagadas.
*
(1) Alfonsina Storni, poetisa modernista argentina
que se suicidou nas águas do Mar del Plata, em
Buenos Aires, em 1938.

Joaquim Pessoa
in QUE NOME DAR A ESTE LIVRO?, a publicar
pela Editora Edições Esgotadas.