Tuesday 21 January 2020

DÚVIDA

Uma dúvida, fêmea feroz, altíssima
estrela negra, fogo essencial para tudo
o que não é ainda coisa redonda, magnífica,
que se instala devagar na fala, no peito, nos
domínios da luz. Cresce em redomas de
ansiedade, viscoso animal que rasteja sinuoso,
até se enroscar nas húmidas pupilas e dormir
em nós como a criança oculta que nos liberta
e nos percorre enquanto praia ou um pedaço
de primavera, desfolhando tensões, sinais,
coisas cinzentas que o silêncio sabe e justifica.
Tudo me é fundamental quando interrogo
a dúvida, quando me pergunto onde é o
meu lugar. É assim a palavra mais doce
e furiosa, a palavra dúbia, a palavra dúvida,
essa que cria em si mesma uma forma de
fado, de fuga, de fósforo, de fluxo mental
como constelação branca entornada no
soalho do tempo, nódoa inconsolável, o
exaspero de um crime. Essa dúvida tece,
gasta, transfigura, fere. Essa dúvida é
filha com coração de diamante, que já
de nós saíu mas ainda não voltou.

Joaquim Pessoa
in QUE NOME DAR A ESTE LIVRO?, a publicar
pela Editora Edições Esgotadas.