Tuesday 3 January 2012

INVENTÁRIO

E, apesar de tudo, sou ainda o Homem,
um bípede com fala e sentimentos!
Ao cabo de misérias e tormentos,
continua
a ser a minha imagem que flutua
na podridão dos charcos luarentos!

Sou eu ainda a grande maravilha
que se mostra ao mundo!
O negro abismo que tem lá no fundo
um regato a correr:
uma risca de céu e de frescura
que murmura
a ver se alguma boca quer beber.

Quanto o grave silêncio da paisagem
me renega e protesta,
pouco importa na festa
deste encontro feliz;
Obra de Arcanjo ou de Satanás,
eu é que fui capaz
de fazer o que fiz!

Podia ser melhor o meu destino,
ter o sol mais aberto em cada mão...
Mas, Adão,
dei o que a argila deu.
E, corpo e alma da degradação,
o milagre é que o Homem não morreu!

Não! Não me queiram na cova que não tenho,
porque eu vivo, e respiro, e acredito!
Sou eu que canto ainda e que palpito
no meu canto!
Sou eu que na pureza do meu grito
me levanto!

Miguel Torga