Sunday 9 February 2014

HAMLET NA ESCADA


Félix Contreras, meu amigo, companheiro,
pareces o jovem mais velho do mundo.
Na tua cara de máquina do tempo
revela-se prematura
uma velha e carnuda sabedoria,
porque a fome que passaste é antológica.

Essa fome impertinente, indecifrável,
que sempre esteve ao nosso lado;
que ninguém sabe donde vem
nem para onde vai;
nem se fica ou se parte,
burilou-te sem consideração,
com rugas cuneiformes,
a pele escura do rosto.

Essa relíquia, essa fome antiga,
todos a passámos mais ou menos.
Essa praga não alterou
o sereno fulgor do teu olhar.
As malvadas bruxarias
furaram-te a pele, que é a tua fronteira;
mas não te assomaram aos olhos,
que contêm o melhor que o homem tem:
o amor, a amizade, o alegre riso.

Entre a fome que te chegava por ráfegas,
como os ciclones tropicais,
e o misterioso desejo de ser poeta,
parecias um Hamlet de província
no meio de uma escada alta
declamando para um público invisível.

Subir ou descer a escada
que leva a reinos diversos.
Subir à glória ou à fome
ou descer ao jornalismo
frutífero das jantaradas.
Era assim no passado colonial.

Submerso em rios de café com leite
e no tédio atroz do quotidiano
deambulavas numa pobre bicicleta,
tão fraca como tu, mensageiro de farmácia,
por ruas soalhais, cheias de pó.
A tua única festa: livros emprestados.
Por alguém, por muito poucos, por qualquer.
Por alguém, por muito poucos, por qualquer,
por aquela velha do fonógrafo.

Agora a escada já não existe.
E o rumo está marcado em nova bússola,
vejo-te de pé, bem no teu tempo,
saboreando o que outros poetas auguraram.
Ninguém o merece mais do que tu.
No teu estilo não há ódio nem vazio
apesar dos chuvascos que passaste,
mas a aura serena do poeta.
Eu agradeço ter-te conhecido
a esta Revolução, maior do que nós,
pois conhecer um poeta é habitar um oásis
num mundo de loucos perigosos.

Oscar Hurtado