Wednesday, 30 April 2025

Há palavras que nos beijam

 
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill

Sunday, 27 April 2025

liberdade

 
tenho preso o futuro dentro das mãos
trago no cérebro a força criativa dos homens
e não posso libertá-los enquanto for cativo
do passado, do presente e dos patrões.

Miguel Tiago

Thursday, 24 April 2025

semente

 
trago nas mãos uma semente
saída do nosso sangue,
saída do nosso ventre.
trago nos punhos uma força
saída das nossas lágrimas,
amassada nas nossas esperanças.
trazemos no peito a falta de vergonha
por para ela não termos motivo,
no rosto o sorriso
a revolta na alma.

Miguel Tiago

Monday, 21 April 2025

Fado do trigo

 
É da terra sangrenta terra braço
Terra encharcada em raiva e em suor
Que o homem pouco a pouco passo a passo
Tira a matéria viva do amor.
Devagar a seara ondula as ancas
Como fêmea abrasada de desejo
E aberta ao vento e ao sol concebe as plantas
Mulher e mãe na fúria dum só beijo.
Prendo os meus lábios à sede
Mordido por um fio de água
O Alentejo não cede
Mesmo com olhos de mágoa.
Olhos celeiros do trigo
Semente no coração
Meu trigal de pão amigo
Adubado no meu chão.
Além Tejo além coragem
Com as paredes de cal
És a alma da paisagem
Brancura de Portugal.
Depois de prenha a terra fica linda
Crescem cabelos loiros como o fogo
Laços vermelhos na planície infinda
Papoilas vivas que se acendem logo.
Pois quando a terra for de quem lhe quer
Não há mais dor no parto dos trigais
Será terra feliz terra mulher
Com filhos de quem todos somos pais.

Ary dos Santos

Friday, 18 April 2025

Lagoa

 
São rios que brotam do teu ventre de mulher e correm por montes e vales até se espraiarem em lago que corre para o mar. Em dias de acalmia o caudal é menor e podem sempre voltar à nascente, desaguando nesse ventre já cansado como se fosses foz. Em noites de tempestade a senhora das águas ergue-se e o mar, violento e imperativo, rasga-te novamente e penetra-te como sempre o fez, para morrer em teus braços. Abre-se o ventre, centro de ti, e deixas correr as águas como se fossem filhos. E nada os detém até se libertarem, adultos e felizes, no encontro com a maior e mais fecunda das vidas: o mar!

Tuesday, 15 April 2025

Fábula

 
O lobo foi ter
com a galinha
e disse-lhe:
«Devíamos conhecer-nos
melhor para vivermos
com amor e confiança.»
A galinha achou bem
e foi com o lobo.
Foi por isso que as suas
penas ficaram espalhadas
por todo o lado.
Bertolt Brecht

Saturday, 12 April 2025

**

 
As traineiras abrigam-se na barra,
os mastros em fantástico arvoredo.
São peixes coloridos, de brinquedo,
e eu o triste rapaz que solta a amarra.
Os telhados reúnem-se no largo,
assembleia de pobres e crianças.
Em falas, cantos cobram-se esperanças.
Homens chegam do mar com rosto amargo.
Lá baixo a vaga escreve na muralha
a história destes muros. Toda em brios
salta adiante o Baleal e falha.
E na gávea da velha fortaleza,
fico a seguir o rumo dos navios,
num choro de asas de gaivota presa.
António Borges Coelho
Nota: Na Fortaleza de Peniche, no espaço onde funcionava o Parlatório há vários testemunhos de prisioneiros. Entre eles existe um manuscrito deste poema.

Wednesday, 9 April 2025

humanidade

 
caído aos pés de deus,
o homem renegou ao demónio.
extenuado, vencido,
prostrou-se ao poder magnânimo
do relâmpago e do trovão.

e a humanidade, assim vencida, abandonou-o.

Miguel Tiago

Sunday, 6 April 2025

conto em interrogação

 
que dizes do dia de hoje,
do espelho por onde te miras quando acordas,
do lavatório onde deixas descansar a lâmina da barba,
enquanto limpas o golpe que, sanguíneo, te mancha a toalha
antes alva?

que dizes do dia de hoje que perdeste nos ponteiros do relógio,
no fumo do cigarro que não te lembras sequer de queimar,
que se te esvaiu das mãos como areia da ampulheta que não te disseram
que iam virar?

que dizes do dia de hoje que passou,
que passou nas melodias da rádio,
nas folhas do jornal, no café quente,
nas palavras que disseste, nas que não pronunciaste
e nas de que não te lembraste?

que dizes do dia de hoje,
dos outros que não viste,
dos de cuja alma ou carne sequer te apercebeste?

está bonito, que o céu está limpo.
está bonito porque a lua está luminosa, pálida,
e a noite cálida.
está bonito o dia,
que não poderia ser diferente,
não existindo outra gente.

embora o espelho não tenha reflexo
e a tua toalha da manhã continue branca.

Miguel Tiago

Thursday, 3 April 2025

Nós, o último abraço ao irmão João

 
"Não precisávamos de falar. Como ele dizia
- Tu sabes sempre o que eu estou a pensar e eu sei sempre o que tu estás a pensar
mas muito pouco tempo antes de morrer veio ter comigo e passámos a tarde juntos, sentados lado a lado no sofá. Foi ele quem falou quase sempre, eu pouco abri a boca.
Mostrou-me os braços, o corpo
- Estou miserável
sabia que ia morrer dali a nada e comportou-se com a extraordinária coragem do costume. Coragem, dignidade e pudor. A certa altura
- Para onde queres ir quando morreres?
respondi
- Para os Jerónimos, naturalmente.
Ficou uns minutos calado e depois
- Tu acreditas na eternidade.
Disse-lhe
- Tu também.
Novo silêncio.
- Eu quero ser cremado e que ponham as cinzas na serra, voltado para a Praia das Maçãs.
Novo silêncio. A seguir
- Vou morrer primeiro que tu. Vou morrer agora.
Mais silêncio. Eu
- Ganhei-te outra vez.
ele
- É.
Ele
Ganhamos sempre os dois.
Eu
- Porque é que a gente gosta tanto um do outro?
Ele silêncio antes de
- Se me voltas a falar de amor vou-me embora.
eu
- Sabes onde é a porta.
Mas não voltámos a falar de amor. Para quê? Estava ali todo. Depois quis ver os livros
- Para aí vinte mil, não?
eu
- Mais ou menos, incluindo os muitos que encontrei numa livraria de segunda mão, assinados por ti.
Silêncio. Eu
- Não podia suportar a ideia de que outras pessoas tivessem em casa os livros do meu irmão.
Gesto vago. Depois ele
- António
e silêncio. Ou seja um diálogo de amor compridíssimo.
Depois
- Se os pais cá estivessem
e esta frase fez-me compreender melhor a sua imensa dor. A mãe para quem a inteligência, num homem, era a forma suprema de sensualidade. E um rabo grande a coisa mais feia deste mundo. Um homem inteligente, na sua opinião, era atraentíssimo.
- Um homem bonito e estúpido ao fim de um quarto de hora não existe
e ainda bem porque, assim, talvez tenhamos algumas chances com ela. A mãe, ainda
- Desafio qualquer mulher no mundo a ter filhos tão inteligentes como os meus.
E ele continuou a falar:
- Depois eu fui para Nova Iorque e tu para África.
Numa altura, depois de África, em que ele estava a sofrer muito meti-me num avião e fui para casa dele. Durante o dia ele trabalhava no hospital e eu ficava às voltas com o Fado Alexandrino. Depois jantávamos juntos e comíamos uns gelados enormes que ele trazia a vermos os play-offs do basquete. Um de nós
- E jogam com humor
o que é tão raro no desporto. Aos sábados um bocado numa discoteca. Camisas cheias de baton. A certa altura olhou, do sofá, para a estante mais próxima: Um livro de Marcel Pagnol. Ele
- A nossa infância toda.
E eu com vontade de tocar-lhe. Claro que não toquei. As suas mãos, que conhecia tão bem, poisadas nos joelhos. Embora impassíveis estávamos demasiado emocionados.
Ele
- De qualquer modo não nos perdemos um ao outro eu, depois de um silêncio compridíssimo
- Nunca nos perdemos, não é agora que isso vai acontecer.
Ele
- Vou chamar um taxi.
Silêncio.
Ele
- Acompanhas-me lá abaixo?
Entre a casa e a rua uma distância grande. Era o fim do dia, já não estava muito sol. O taxi à espera no passeio. O chofer, a quem ele operara a mãe, veio abrir-lhe a porta do carro. Ele voltou-se para mim e disse o meu nome. Eu aproximei-me de e disse o seu. Abraçámo-nos com muita força e, de repente, começou a chorar. Só sentia ossos nas minhas mãos. Mas nada de mariquices, claro, sobretudo nada de mariquices.
Ele
- Não digas a ninguém que chorei.
E sentou-se no banco ao lado do chofer, sem olhar para mim. Não olhámos um para o outro, aliás, mas nunca nos vimos tão bem. O carro foi-se embora. Fiquei na borda do passeio até que desapareceu. E então, de mãos nos bolsos, voltei para casa. Nunca houve um abraço assim no mundo.
António Lobo Antunes
in Visão, 8 de Dezembro de 2016.

Tuesday, 1 April 2025

- sem título -

 
caído no chão,
um corpo,
é meu.
evisceração.

Miguel Tiago