"Não precisávamos de falar. Como ele dizia
- Tu sabes sempre o que eu estou a pensar e eu sei sempre o que tu estás a pensar
mas muito pouco tempo antes de morrer veio ter comigo e passámos a tarde juntos, sentados lado a lado no sofá. Foi ele quem falou quase sempre, eu pouco abri a boca.
Mostrou-me os braços, o corpo - Estou miserável
sabia que ia morrer dali a nada e comportou-se com a extraordinária coragem do costume. Coragem, dignidade e pudor. A certa altura
- Para onde queres ir quando morreres?
respondi
- Para os Jerónimos, naturalmente.
Ficou uns minutos calado e depois
- Tu acreditas na eternidade.
Disse-lhe
- Tu também.
Novo silêncio.
- Eu quero ser cremado e que ponham as cinzas na serra, voltado para a Praia das Maçãs.
Novo silêncio. A seguir
- Vou morrer primeiro que tu. Vou morrer agora.
Mais silêncio. Eu
- Ganhei-te outra vez.
ele
- É.
Ele
Ganhamos sempre os dois.
Eu
- Porque é que a gente gosta tanto um do outro?
Ele silêncio antes de
- Se me voltas a falar de amor vou-me embora.
eu
- Sabes onde é a porta.
Mas não voltámos a falar de amor. Para quê? Estava ali todo. Depois quis ver os livros
- Para aí vinte mil, não?
eu
- Mais ou menos, incluindo os muitos que encontrei numa livraria de segunda mão, assinados por ti.
Silêncio. Eu
- Não podia suportar a ideia de que outras pessoas tivessem em casa os livros do meu irmão.
Gesto vago. Depois ele
- António
e silêncio. Ou seja um diálogo de amor compridíssimo.
Depois
- Se os pais cá estivessem
e esta frase fez-me compreender melhor a sua imensa dor. A mãe para quem a inteligência, num homem, era a forma suprema de sensualidade. E um rabo grande a coisa mais feia deste mundo. Um homem inteligente, na sua opinião, era atraentíssimo.
- Um homem bonito e estúpido ao fim de um quarto de hora não existe
e ainda bem porque, assim, talvez tenhamos algumas chances com ela. A mãe, ainda
- Desafio qualquer mulher no mundo a ter filhos tão inteligentes como os meus.
E ele continuou a falar:
- Depois eu fui para Nova Iorque e tu para África.
Numa altura, depois de África, em que ele estava a sofrer muito meti-me num avião e fui para casa dele. Durante o dia ele trabalhava no hospital e eu ficava às voltas com o Fado Alexandrino. Depois jantávamos juntos e comíamos uns gelados enormes que ele trazia a vermos os play-offs do basquete. Um de nós
- E jogam com humor
o que é tão raro no desporto. Aos sábados um bocado numa discoteca. Camisas cheias de baton. A certa altura olhou, do sofá, para a estante mais próxima: Um livro de Marcel Pagnol. Ele
- A nossa infância toda.
E eu com vontade de tocar-lhe. Claro que não toquei. As suas mãos, que conhecia tão bem, poisadas nos joelhos. Embora impassíveis estávamos demasiado emocionados.
Ele
- De qualquer modo não nos perdemos um ao outro eu, depois de um silêncio compridíssimo
- Nunca nos perdemos, não é agora que isso vai acontecer.
Ele
- Vou chamar um taxi.
Silêncio.
Ele
- Acompanhas-me lá abaixo?
Entre a casa e a rua uma distância grande. Era o fim do dia, já não estava muito sol. O taxi à espera no passeio. O chofer, a quem ele operara a mãe, veio abrir-lhe a porta do carro. Ele voltou-se para mim e disse o meu nome. Eu aproximei-me de e disse o seu. Abraçámo-nos com muita força e, de repente, começou a chorar. Só sentia ossos nas minhas mãos. Mas nada de mariquices, claro, sobretudo nada de mariquices.
Ele
- Não digas a ninguém que chorei.
E sentou-se no banco ao lado do chofer, sem olhar para mim. Não olhámos um para o outro, aliás, mas nunca nos vimos tão bem. O carro foi-se embora. Fiquei na borda do passeio até que desapareceu. E então, de mãos nos bolsos, voltei para casa. Nunca houve um abraço assim no mundo.