talvez já não haja morangos. há cerejas, maçãs e laranjas era o que
agora se podia ler na mesma placa de madeira erguida na beira da
estrada. por perto, o sol só permitia uma pequena sombra junto ao balcão
improvisado na lateral da camioneta. e as cerejas, algumas ao sol,
reflectiam o vermelho da luz solar com fulgor. não consigo já distinguir
na memória se alguém se preparava para trazer cerejas, maçãs ou
laranjas a dois euros o quilo, mas espero que sim, para que não desistam
de anunciar fruta à beira das estradas e para que nos dias de verão a
minha irmã possa sempre parar o carro para provar uma melancia fresca,
mesmo que a não compre.
foi longo o vendaval do inverno. mas tudo tem o seu fim, ainda que
temporário. a superfície do mondego não estava agitada e a água podia
assim reflectir sem perturbação o verde das margens vivas, o cinza da
livraria litológica e o azul do céu. se é bonito o quadro que a a luz
reflectida e a paisagem pintam no encaixe do mondego algures entre os
distritos duros de coimbra e viseu, é porque ainda não vimos o que faz a
luz refractada pelo rio adentro. aqueles raios oblíquos do sol que
perfuram com novo ângulo a superfície e vão iluminar os olhos sempre
abertos dos peixes que aproveitam a corrente laminar para descansar. os
que lutaram, claro, porque dos outros não reza a história. e as algas,
que na torrente do inverno mal se prendem na rocha do leito, agora
ondulam como uma seara verde no vento suave. são assim mesmo as coisas: o
mesmo rio que arrancou pedras e agitou o próprio coração de quem o viu,
é o que agora permite que o espelho à sua superfície reflicta almas
tranquilas.
o mesmo rio que levantava pedras, areias, siltes e argilas, não tem
agora força para turvar a água com a mais pequena partícula. voltará a
ter, é certo. mas só quando os finos assentam, podemos ver através da
água. desta vez, parece que me terei deixado levar pela simplicidade das
impressões. e eis que, assente a poeira, também se desfazem ilusões:
não há meias palavras para dizer a verdade.
Miguel Tiago