há morangos, maçãs e laranjas. era o que podia ler-se na
tabuleta de madeira à beira da estrada. a poucos metros à frente, as
mãos engelhadas do frio e curtidas pelo vento salgado dos anos contavam
algumas moedas para fazer um troco. o cliente satisfeito já levava um
belo saco de laranjas e sorria. claro que não faço ideia se foi assim a
estória, mas é o que dá gosto depreender pela tabuleta de madeira.
sei que as margens do Mondego foram vencidas pelo volume e
pela torrente e que acabaram por ceder. ao viajar por entre o vale da
livraria, o rio serpenteava em sentido contrário e nunca o tinha visto
tão alto ou tão revolto. um rio revolto é sempre inspirador. e aqueles
peixes que pensavam sossegar e permitir que o frio lhes petrificasse as
preocupações eis que dão por si a ter de sair da letargia do gelo e a
esbracejar para vencer os remoinhos. alguns cansaram-se e sucumbiram.
outros não. já dos que ficaram a ver, como a nêspera, não reza a
história. também não tenho a certeza de que tenha sido exactamente
assim, mas é o que dá ter este gosto pelo impressionismo: uma pessoa vê
um rio revolto e fica com a impressão de que há lá sempre mais qualquer
coisa. claro que se podia sempre dizer "prateado o céu plúmbeo, escondia
a cor barrenta do rio que, agitado, o reflectia" e pronto. mas é também
o desafio das impressões, ver para além delas.
é por isso que posso escrever "o teu beijo pousou leve no
meu peito" e saber que a verdade escreve assim: "o meu coração pulsa o
sangue da tua alma."
Miguel Tiago