Tuesday, 18 November 2025

Liberdade

 
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
Sophia de Mello Breyner Andresen

Saturday, 15 November 2025

Poema

 
A minha vida é o mar o abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada
Sophia de Mello Breyner Andresen

Wednesday, 12 November 2025

DIES IRAE

 
Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.
Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.
Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.
Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!
.
Miguel Torga, in “Poesia Completa”
© Vincent Van Gogh — “la ronda de los presos”-1890




Sunday, 9 November 2025

A Nêspera

 
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece
Mário-Henrique Leiria

Thursday, 6 November 2025

Abraça-me

 
Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.

Joaquim Pessoa

Monday, 3 November 2025

A LIGA

 
Louva-a-deus martins agarrou o marido pela cintura,
enlaçou-o ternamente, acariciou-o e fez amor com ele
até atingir o orgasmo. Depois, como é normal entre os
louva-a-deus, ele, submisso e resignado, entregou-se
inteirinho para que ela o devorasse, e assim sucedeu:
louva-a-deus martins foi retraçando o companheiro
com os seus finíssimos dentes, lenta e ritualmente, até
que dele nada restou senão uma ligeira azia que a ter-
rível amante combateu com duas ou três dentadinhas
numa folha de hortelã. Ah!..., suspirou ela, que destino
o meu!... Amar é a minha perdição!... E, rapidamente,
convocou as outras louva-a-deus para uma reunião
extraordinária, que veio a realizar-se no cimo de um
loureiro, de onde ninguém saiu sem que ficassem apro-
vados os estatutos da nova-liga-feminina-para-a-defe-
sa-dos-machos. Machistas!, gritaram no final, em coro,
as não aderentes, de temperamento mais ardente, ou
de maior apetite. E, a partir daí, naquele imenso cam-
po de girassóis, as louva-a-deus ficaram divididas (até
quando?) em duas espécies: as que comem os machos
e as que se deixam comer.
Joaquim Pessoa
In Histórias Fabulosas, PORTUGUÊS SUAVE

Saturday, 1 November 2025

Dia 340.

 
Bom dia também para ti, andorinha do tempo perdido, alma da minha mãe, canto de antero, soneto de luto pela verdade, coragem madura de não ser genial mas ser sublime.
Bom dia ave, bom dia pássaro, bom dia pequena pergunta, afável resposta, bom dia margens de uma fatigada ribeira que regressa quando já nada parecia respirar água, erva, o que mais a terra busca e devolve para ser bom e ser bom dia!
Bom dia límpida irmã da simplicidade, humilde aprendiza das técnicas de Deus, é uma pena, é uma pena essa simplicidade que o vento te rouba, tentando ser como tu, destino e regresso de uma água que floresce, sorridente perfume que fascina a primavera!
Bom dia primeiro sopro da manhã, imensa claridade que se anima nos ramos e se aninha no coração, sublime criação do autor das estrelas, que te chegas a mim tocando o chocalho dos meus limites, amada irmã, amada amiga, tu que tens um nome original para a eternidade!
Bom dia, então, pedaço de luz, estilhaçada alegria pelos caminhos do tempo, tu que és o contrário da quietude, vento simples das ideias e de tudo o que queima e arde à nossa volta, infinita dúvida que não sei já se é grande, se é pequena, mas é do tamanho de ti!
Joaquim Pessoa