Saturday 6 January 2018

POEMA SEXAGÉSIMO SÉTIMO


Beijo o sino que é a tua boca
e tudo nasce, tudo canta, tudo
se transforma.
Nunca foi um pecado amar a tua carne, com
um amor integral e único,
e o espírito que brilha no alto das crianças
ou no coração azul das macieiras.
Percorro a tua vida com este amor cheio
de dúvidas, e com mãos duvidosas também.
Em ti, posso medir a esperança, a serenidade
e o imenso cansaço crescendo
dos meus braços para o mar,
entrando depois pelo teu corpo
para acender lentamente
o fogo
e pronunciar
a oração do fogo.

O que escrevo,
há muito retirei da tua voz,
esse rio que transborda em mim,
cujas margens sou eu, este eu abnegado e lutador,
capaz de florir uma alegria jovem enquanto
o fogo arde.
Não é uma coisa admirável
compartilhar o mesmo leito, como
duas gaivotas felizes
embasbacadas de azul?

Estamos
em toda a parte,
até nos dias mais ferozes.
A minha vida e a tua vida
ondulam nos trigais sob o vento da primavera
e sei que será nosso o oiro macio deste pão,
porque é também nossa a fome de infinito.
A pátria das palavras ainda existe em nós,
ainda espera por nós,
para que lhe demos um pouco mais
do que o vazio,
agora que se mostra mais terrível a pilhagem
num tempo em que não há história
nas histórias.

Alguém emboscou a nossa casa
para roubar às palavras a carícia do que somos
para se deter contando as nossas feridas,
mas as palavras resistem,
não deixam de pensar,
trazem em si o fogo e a turbação da coragem,
as palavras amam-nos,
são guardiãs do nosso amor,
e se eu tiver de morrer sangrando,
que seja com elas, sem ter
de lamentar a minha luta, sem
ter de renegar o canto
imprescindível
do amor.

Joaquim Pessoa