Monday 1 January 2018

O LIVRO COM CAPA DE COURO

Na noite passada
à luz
fo luar
li, durante horas,
como um derviche louco
cuja vela se tivesse apagado,
li o livro com imagens a cores,
o grande livro da capa de couro dourado, já rasgada.

Cada página amarelecida
do livro que dorme
por baixo da capa rasgada
de couro dourado
espalhava
um odor a bafio.

As suas linhas animaram-se uma a uma
e diante da mesa de leitura
ergueram-se sob a forma
que lhe dão as fábulas:
O Diabo
tomou o aspecto de uma serpente,
Adão
sucumbiu
à atracção de Eva.
Vi Abel matar Caim como um danado,
um grande navio em madeira singrou no Oceano do sonho.
No horizonte vi Noé
à espera de uma pomba.
Então pareceu-me estar a calcar
a terra de um túmulo.
No alto do Monte Sinai vi Moisés
levantar os braços para Deus, que o ouviu
e a um sinal da sua vara o mar abriu-se.
Os filhos de Israel
encontraram o caminho da Terra Prometida...
A oração de Zacarias
trasnformou-se num suspiro infinito.
Jesus nasceu e Maria
fez Dom da sua virgindade a Deuas...

Medina ofereceu a morada
a Mahomé o chorichita,
e Kerbela para Husseyin
tornou-se uma sepultura de fogo.
Sim, pouco a pouco tudo isso
se levantava e despenhava através das idades,
à medida que eu virava as páginas
do livro que espalhava odor a bafio.
Desapareceu a lua, o sol ergueu-se
uma chama nova nasceu
no meu coração.
E depois
com um gesto profundo e solene
atirei-o para o fundo de um poço
de forma a poder dormir lá o sono eterno -
o livro das páginas amarelas
com capa de couro dourado, já rasgada!...

Pobres, pobres de nós que fomos enganados
durante séculos.
Que rastejámos
como répteis.
Que ardemos
como tochas
para lobrigar na escuridão
os sinais que lá foram traçados,
para vê-los
na noite escura
e prosternar-nos diante deles.
Tudo mentiras,
o céu não concedeu
nem a misericórdia nem a salvação
aos escravos que sofrem até mais não poderem,
Moisés, Mahomé, Jesus
concederam tão-só uma prece vã, um incenso mentiroso
com os seus infernos e os seus diabos,
apontaram-nos o caminho do paraíso das fábulas,
continuamos a ser escravos e a ter senhores,
e há sempre um muro,
um muro de pedras malditas cobertas de musgo,
que atribuiu dois destinos diferentes
aos filhos da terra,
chamando senhores a uns e escravos a outros!
Que todos os seus donos, santos e eremitas
desapareçam nos profundezas das trevas eternas
cujo caminho até agora nos fizeram seguir.

Nos caminhos da luz
só existe
uma única religião,
uma única lei, uma única fé, um único direito,
igual aqui como em toda a parte:
O TRABALHO DO TRABALHADOR!

Nazim Hikmet