Thursday 21 December 2017

Há quarenta anos - Vinicius


«1969 é para Vinicius de Moraes um ano "português". Lisboa recebe-o entusiasticamente. aplaudindo-o com o máximo calor»: assim se diz na nota à 4ª edição de «O Operário em Construção e Outros Poemas», publicada em 1975, com selecção e prefácio de Alexandre O'Neill.

É certo que Vinicius tinha passado por cá em finais de 1968, a caminho de Itália, tendo então participado num serão em casa de Amália, onde também estiveram a Natália, o Ary, o Mourão-Ferreira - e desse serão nasceu o disco «Amália/Vinicius».
Mas foi em 1969 que o Poeta nos visitou como queríamos.

Recordemos alguns momentos dessa visita.
No dia 13 de Dezembro de 1969, no Teatro Villaret, em Lisboa, Vinicius - com Baden e Marcinha - realizam o seu segundo (ou terceiro?) espectáculo.
Um espectáculo inesquecível.
A dada altura, Vinicius falou da situação que então se vivia no seu País: no dia anterior, os militares fascistas que, com o apoio dos EUA, ocupavam o poder no Brasil há cinco anos, tinham instaurado o Ato Institucional Nº5 - o sinistro AI5 - que institucionalizava a censura, a repressão, a prisão, a tortura, o assassinato.
E o Poeta falou da tragédia que caíra sobre o seu povo - comparando-a à situação que se vivia em Portugal.
Depois, leu o poema Pátria Minha, que Baden acompanhou dedilhando, no violão, o Hino do Brasil.
Mais tarde - aproximava-se o espectáculo do fim - chegou a notícia (que creio não viria a confirmar-se) de que o Chico teria sido preso.
E o Poeta falou do seu amigo... - enquanto a Marcinha chorava... e o público chorava...
Um espectáculo inesquecível.

Nos dias que se seguiram, o grupo faz mais uns tantos espectáculos - na boite Ad Lib, em Lisboa, e em várias cidades portuguesas: um êxito, em todo o lado.
Vinicius foi, então, muito criticado por alguns... críticos que achavam que poeta não deve fazer poemas para canções e muito menos ir a boite cantar e dizer poemas... enfim, os «argumentos» que, de facto, pretendiam (eles sabiam porquê...) menorizar a qualidade maior da poesia de Vinicius (como, mais ou menos por essa altura, fizeram - e continuam a fazer... - em relação ao nosso Zé Carlos).

A vinda de Vinicius a Portugal, fora antecedida, em Abril de 1969, pela publicação, pela Dom Quixote, do livro acima referido: «O Operário em Construção e Outros Poemas» - que foi, talvez, a primeira, ou uma das primeiras edições portuguesas de poemas de Vinicius.
O livro teve imediato sucesso: ainda nesse ano saiu uma 2ª edição, no ano seguinte, outra... e já lá vão creio que umas dez...
A 4ª edição - a de 1975 - teve enorme vantagem de vir acompanhada por uma «Carta-Prefácio Para Vinicius de Moraes», na qual o O'Neill fala precisamente desse «ano português» de Vinicius.
Trata-se de um texto que - mesmo indo este post já tão longo e com a consciência de que estou a abusar da vossa paciência - não resisto a deixar-vos aqui.

«Amigo:

Quando estiveste, da primeira vez, por aqui dando show, umas granfas (loiras e morenas notáveis, como diria Mestre Carlos, mas ganfas), comentando os preços da boate onde, em duas ou três sessões, te produziste com a tua turma, disseram ou fizeram dizer: «Quem não tem dinheiro, não tem Vinicius.» Vinicius, vícios... não ligues. Olha que elas dispunham de muito bago. Estavam era a ser desajeitadas na maneira de te homenagear. Algumas conheciam de ti o poeta encaixilhado no sério. Charmoso, mas, apesar de tudo, respeitável-respeitoso. Usavam o teu "Soneto do Amor Total" não como tabatière à musique, nem como máquina de pensar, mas como caixinha de arroubos, entre as muitas outras que sempre trazem na malinha, com coisinhas para pôr ou tirar dor de cabeça.
Dessas, uma quantas mostraram-se decepcionadas contigo por teres descido do livro à boate, do soneto ao samba. E fizeram constar a decepção, a ofensa que sentiam. Não ligues. Estavam mordidinhas de inveja perante a quantidade de liberdade que tu, em cada noite, produzias!
Marcus Vinicius, eu vi-te aquém e além palco, con-vivi-tigo. No Alentejo, que agora, mais do que nunca, ai de nós, é um adjectivo, vi-te, convivi-te no teu simplório convívio. Estavas em construção, como sempre não definitivo. Tua felicidade, teu riso mais riso, era entre pessoal amigo.
Há muita gente ainda por aí (tenho medo que aumente!) que de ti o que quer é o catorze, quer dizer o soneto, e rejeita teu outro meio de comunicar, que afinal é o mesmo: tocantar.
Perceba, por uma vez, essa gentalha, que o Vinicius poeta e o Vinicius sambista são da mesma igualha!
São
o operário
em construção.

Abração
Alexandre O'Neill
Lisboa, Nov. 75»