Friday, 30 June 2017

LEGADO


O que eu espero, não vem.
Mas ficas tu, leitor, encarregado
de receber o sonho.
Abre-lhe os braços, como se chegasse
o teu pai, do Brasil,
a tua mãe, do céu,
o teu melhor amigo, da cadeia,
abre-lhe os braços como se quisesses
abarcar toda a luz que te rodeia.

Não lhe perguntes porque tardou tanto
e não chegou a tempo de me ver.
Uns têm a sina de sonhar a vida,
outros de a colher.

Miguel Torga

Tuesday, 27 June 2017

PREGÃO

Dum gesto alcançámos a terra.

Os montes, os mares, as estrelas, as nuvens, as almas, os deuses e as
sombras.
- o cortejo multissecular das sombras.

Antes
os braços eram curtos e terminavam por duas mãos pequenas.
Hoje
não há padrão que os meça,
prolongados nos montes e na viva complicação das máquinas,
nas chaminés voltadas para o céu.
Antes
as bocas eram breves para o beijo da casa.
Hoje
dilataram-se infinitamente no sorriso sublime e sem limites da
universalidade.

Todos os músculos estalaram.
Todos os olhos gritaram.
Todas as bocas gritaram.
Todos os pulmões se abriram ao olfacto sadio da terra húmida.
Terra.
Terra da partida e do regresso.
Terra!

Serão baixos todos os andaimes de biliões de andares,
fracas todas as asas,
para a nossa paixão da estratosfera:
para o caminho da terra que nos fará eternos.
Fraca nomenclatura de todos os tratados
para o nosso mundo de amor.

Os chicotes quebraram-se, vencidos,
vergados sobre a terra como nós até hoje.

Uma vida nova começa neste instante.
E agora, que dum gesto alcançámos a terra, nós seremos enfim o nosso próprio poema.

Mário Dionísio

Saturday, 24 June 2017

O DILÚVIO


Suicidou-se o João!
Não se rale, senhora,
às vezes acontece.
Assaltaram o meu banco!
Não se rale, senhora,
às vezes acontece.
Uma bomba na rua!
Não se rale, senhora,
As vezes acontece.
O meu filho é um estróina!
Não se rale, senhora,
às vezes acontece.
O mundo está doido!
Não se rale, senhora,
às vezes acontece.

Acontece isso e mais,
e mais e ainda mais.
E ainda aconteceu pouco.
Não se pode ser sempre igual
desde o berço até morrer.
E cansamo-nos, senhora,
de comer sempre do mesmo.
E de comprar o jornal
e de dormir na mesma cama.
E sentimo-nos humilhados
quando, ao fazer a barba,
nos contam histórias de fadas.
E então acaba tudo
com isso que me conta agora:
suicídios, assaltos, bombas,
loucuras e...
e mais, senhora, e mais.
Mas você disso nada sabe.
Não é nova e tem muita massa.

Ovidi Montllor

Wednesday, 21 June 2017

POEMAS DO CÃO DANADO (2)

Olha: tu que me és única,
mais valia nunca teres poisado o teu olhar
nas minhas mãos,
nos meus cabelos
e nos meus olhos agora e para sempre cheios de ti.
Ter-te-ia sido preferível afinal.
Assim só eu corria pelas ruas
apedrejado às esquinas
como sucede sempre a um bom cão danado.
Não sofrias,
não choravas,
não te martirizavas tanto em cada hora.
Assim, enrodilhada sem querer no meu fracasso,
perdeste talvez aquilo que não volta a repetir-se.
Mais te valia nunca me encontrares,
a mim, o sempre trôpego em todas as passadas,
coberto de miséria, de grotesco,
ridículo!

Mário Dionísio
(«O Homem Sozinho na Beira do Cais»)

Sunday, 18 June 2017

CENTRO COMERCIAL


Agora a morte é diferente,
facilitaram-nos o desespero, a angústia
tem já ar condicionado. Em vez
dos bancos de jardim, por certo demasiado
rudes, temos enfim lugares amplos
onde apodrecer a miséria simples do corpo.

Que incalculável felicidade a de percorrer
galerias de nada tresandando a limpeza
e segurança. Aí se abandonam jovens
rebanhos sentados sorrindo ao
vazio palpável, ou ferozmente no meio
dele. Revezam-se - mas quase diríamos
que são os mesmos ainda, exaustos
de contentamento. Dêmos pois as boas vindas a
esses heróis do betão consagrado. Só eles nos fazem
acreditar no advento do romantismo cibernético.

É doce a merda que nos sepulta
e o cancro que um dia destes nos matará
há-de ser muito limpo, quase ecológico.

Manuel de Freitas

Thursday, 15 June 2017

POEMAS DO CÃO DANADO (1)

Quando nasci
- de pouco valeu estarem os campos cheios de flores -
uma garra disforme
deixou-me a sua marca negra até ao sangue.

Sorriu o pai e a mãe
do destino do menino venturoso.
Eu próprio ri de segurança e de vitória.
Mas a cada minuto, a cada passo,
a segurança e a vitória foram sendo mentira.
(Basta eu chegar para que tudo se perturbe.
Aliás nem ninguém nem nada se perturba:
só eu sou sempre afinal o perturbado.)

Mas não desisto.
Insisto.
Procuro chegar, entrar.
Procuro, como um faminto de sacola na mão,
essa alegria de toda aquela gente,
que diz sem sobressaltos: aqui estou.
Mas isso sim. Basta eu chegar:
lá vem o grito fatal de: cão danado!
É escusado teimar.
Todas as portas me estarão fechadas,
deixando escorrer um fio de luz
ou um fio de palavras...

E não desisto.
Insisto.

Mas se a mão negra me marcou para sempre,
a que vem este desejo inferior
de lá chegar?

Mário Dionísio
(«O Homem Sozinho na Beira do Cais»)

Monday, 12 June 2017

DISPO


Cerco e troco
escrevo e ponho
*
Levanto a saia e o subido
mostra a bainha do corpo
descubro o nu no vestido
*
Perpasso as mãos
nas penumbras
desacato o que é restrito
Disponho do proibido
permito, dispo
desdigo
*
Caminho pelo prazer
por onde afirmo e prossigo

Maria Teresa Horta

Friday, 9 June 2017

DESCOBRIMENTO

Tanto tempo me disseram que eu estava nos meus caprichos,
no meu desejo (que viria) de conseguir lugar
- e tanto se enganaram
e me enganaram.

Cegos e cego.
Doidos e doido.

Nunca me disseram nada as suas teorias sobre mim.
Quem me falou afinal
foram as casas abandonadas no campo de luzes apagadas,
foram os vultos da noite com um fardo milenário às costas,
foi o suor dos rostos e das mãos sangrando.

Quem me falou de mim
foi o esforço que já vinha de trás e que quer prolongar-se para a frente.

Cegos e cego.
Doidos e doido.

Eu estava muito longe do desejo (que não veio) de conseguir lugar.

Estava no gume da enxada forte,
na argamassa,
nas mãos calosas da obreira levando ao colo o futuro escravo.

Mário Dionísio

Tuesday, 6 June 2017

POSIÇÃO DE GUERRA


Crescem em mim milhões de punhos
cerrados,
bandeiras desfraldadas,
horizontes.
Soam em mim milhões de brados
resolutos,
protestos brutos,
queixumes.
Abrem-se em mim milhões de chagas,
como crateras de fogo.
Rompem de mim vendavais.
Sou eu que me interrogo,
a tudo atento,
sobranceiro ao gozo ou ao sofrimento,
com pensamentos verticais.

Armindo Rodrigues

Saturday, 3 June 2017

SEGUNDO NASCIMENTO

Depois que se romperam os sapatos,
e deixei a gravata pior que uma rodilha no caixote do lixo,
é que vi bem o céu.

Um homem levantou a vista dos torrões e olhou para cima.
Mil cadeias inúteis se quebraram.
Mil caras, mil sorrisos, mil atitudes passaram.
Mil crenças se apagaram.
E dentro de mim mesmo surgi eu.

Enquanto se perdeu a última falripa da sola do sapato
e se esgarçou o fio de seda da gravata,
saltei a outro mundo.
Já não entendo as velhas relações nem amo as minhas velhas amizades.
Tudo o que é dantes me aparece inodoro, insípido, incolor, sem significação.
Já não tenho a noção de caminhar no meio de maltrapilhos.
Não há mais eu e eles porque passou a haver unicamente nós.
Os doutores, as madames e as meninas em série nunca mais me viram
porque passam por mim sem me reconhecerem
e eu não consigo distingui-los bem na galeria imensa do friso dos fantoches.

Tenho a alma repleta de alegria
e os braços cheios de força
e o coração a transbordar amor.

Bendita a miséria que rompeu os sapatos
e esgarçou a gravata que abandonei no lixo
e me fez ver o céu.

Livre.

Agora que deitei fora as lentes emprestadas,
e mandei ao diabo as crenças emprestadas,
e cuspi no altar das coisas consagradas,
agora, sim: sou eu.

Mário Dionísio

Thursday, 1 June 2017

LIBERDADE


Disseram-nos a tiros: cruz, mais nada.
Na cruz estamos. Apenas. Censurados.
Uma nova prisão. Ponto na boca.

Se manténs a conduta conveniente,
poderás dizer palavras permitidas:
Inverno, luz, hispanidade, chapéu.
(Se a língua te entristece de vergonha
arranja um cartaz que diga «MUDO»,
estende a mão e juntas alguns cobres)

Se calças os sapatos pela norma
podes também andar no outro passeio
à procura do sol ou de um tecto que abrigue.

Pagando os teus impostos pontualmente
podes ir à oficina ou ao escritório,
para queimar as pestanas ou as unhas,
partir o peito ou alcançar a glória.

Também terás honestas diversões.
O passar de um enterro, um filme
dos que são devidamente autorizados,
futebol do melhor, um copo de cerveja,
instrutivos programas pela rádio
e missa à tarde todos os domingos.

Mas não penses «liberdade», não pronuncies,
não escrevas «liberdade», não consintas
que ao branco dos olhos ela surja,
ou que o odor se exale pelas roupas
ou apareça no risco do cabelo.

E sobretudo, amigo, ao deitar-te,
não escondas «liberdade» na almofada
para tentar sonhar com melhores dias.
Não aconteça seres sonâmbulo e uma noite,
com ela atravessada no teu corpo,
gritares o seu anúncio pelas ruas
descerrando as portas e as janelas,
matando os guardas-nocturnos e os gatos,
quebrando os lampiões, os chafarizes
e o sono dos justos - porque então
ponto final, irmão, e Deus te ajude.

Maria Figuera Aymerich