Sunday 21 May 2017

DOIS POEMAS DO SONHO

I

Quando as pálpebras caíram nos diversos recantos da cidade,
cada vagabundo só se conhecia a si mesmo,
à sua miséria e ao seu desgosto da vida.

Mas o vento fustigou-os indiferentemente
e a chuva ensopou-os a todos da mesma maneira inóspita e miserável.

E o sonho subiu e juntou-se ao ar.
Cada velha sinfonia se desflorou numa nova sinfonia.
A chuva secou nos fatos e as lágrimas nos olhos.

E quando as pálpebras se ergueram nos diversos recantos da cidade,
todos os vagabundos se conheciam
e sorriam uns para os outros.


II

Desde sempre que o sol surge todas as manhãs anunciando um novo dia.
Desde sempre que as sombras se diluem.
Os homens saltam das camas amassadas
e voltam ao trabalho duro.

Desde sempre que a vida finge um recomeço.
(mas a verdade é que apenas continua
e os homens acordam já cansados.)

Desde sempre que o sol surge todas as manhãs anunciando um novo dia.

Mas nunca tanta alegria.
Nunca os bons-dias dos homens foram bons como os de hoje.
Nunca os cantos das aves foram assim expansivos
e penetraram tanto até ao fundo...

É que nunca a noite foi tão longa
e a miséria das almas tão intensa.

É que nunca em tudo se espelhou
esta suave ternura inexplicável
duma possibilidade que desponta.

Mário Dionísio