Thursday, 12 May 2016
Dia 335
No estio, uma flecha ardente atravessa sem passaporte a minha
admiração. É uma aventura feliz que só termina quando chegam
as chuvas a uma terra que a ninguém foi prometida. A minha bi-
ografia estará para sempre escondida no universo de uma laran-
ja, e se gosto de correr para o mar de braços abertos é porque,
nesse momento, não existe nada que não seja meu.
Só o verão me pede coisas, durante as outras estações são as
coisas que me puxam até elas. Subjugam-me, obrigam-me, man-
dam em mim e, por maior que seja a minha revolta, não consegui
ainda livrar-me dessa ditadura. É por isso que a minha liberdade
veste cores quentes, ocres, laranjas, vermelhos, cujas excepções
são o azul e o muito azul.
E canto, canto como a cigarra dourada, até rasgar as asas, embo-
ra a minha imaginação ande sempre por entre bosques cheios de
sombra, mastigando palavras doces como se fossem frutos fres-
cos, inventando alquimias e desculpas. Verei depois chegar os
pássaros do outono com os seus fatos escuros, como se algo de
trágico estivesse para acontecer. A vocação da terra é a sensuali-
dade, e essa obrigação de repetidamente ficar prenhe, de parir
coisas heróicas, permitindo-nos ser descuidados, fúteis, e capa-
zes de nos contentarmos por saber tão pouco.
Ao menos, no estio, tudo é quase, quase inocente. Até a sabedo-
ria, entre o tempo e o lugar, não é nunca a última a despir-se pa-
ra um despreocupado banho de mar, à hora a que recolheram já
a casa, não só o escaravelho mas também a toutinegra e o pintar-
roxo.
Joaquim Pessoa