Thursday 6 October 2011

IDENTIFICAÇÃO

Vai a barca do mundo à flor das vagas
no seu mar de tormentas;
Gemem os remadores,
mordidos pelo beijo do chicote;
E tu, poeta, como um sacerdote
da bonança,
a conjurar o mal,
a pregar confiança,
a cantar,
a cantar,
sem nenhum desespero
te desesperar!

Sabe cada ternura a pão azedo,
os acenos são ódios disfarçados;
E os teus versos, gratuitos, desfolhados
sobre as chagas da vida
como pensos sagrados
de beleza calmante e condoída!

Que humanidade tens, irmão?
De onde te vem a força, a decisão,
e esse gosto de nunca desertar?
És o Cristo, talvez...
Um Cristo sem altar
que ficasse a lutar
junto de nós,
tão presente, real e natural,
que podemos ouvir-lhe a própria voz.

Miguel Torga