Há quem julgue que nos venceu
só porque estamos para aqui, famintos e nus,
de novo sem terra nem céu,
a apanhar do chão,
às escondidas do luar,
os frutos podres caídos dos ramos.
Mas não.
Temos ainda uma arma de luz
para lutar:
SONHAMOS.
... enquanto os outros, os traidores,
sem lutas nem cicatrizes
entregam a terra ao rasto dos gamos
e douram os olhos dos velhos senhores
com voos de perdizes...
Sim, sonhamos.
o sonho quem o derrota?
- mesmo quando vamos
perdidos na rota
de um barco sem remos
na tempestade de um vulcão.
Sim, camaradas, sonhamos.
Sonhemos!
O Sonho é também acção.
José Gomes Ferreira
Sunday, 30 October 2011
(O Sonho é a nossa arma.)
Thursday, 27 October 2011
ESPERAREMOS CEM ANOS...
(Em frente da estação do Rossio,
quando os ponteiros do relógio
se aproximam da meia-noite.)
Amigos: vai passar mais um ano no relógio luminoso do Rossio.
E a nossa Revolução
cada vez mais sonho frio,
eterna paisagem
de merda sem canos
em que os homens continuam como são
com bocas de granizo
numa repetição de poços de ecos.
Deixá-lo!
Se for preciso
teremos a coragem
de esperar mais cem anos
pela transformação do mundo
no relógio dos Séculos.
(Cem anos que voem nos relógios com asas de um segundo.)
José Gomes Ferreira
Monday, 24 October 2011
(Neste Bairro da Ferrugem.)
Neste Bairro da Ferrugem
feito com barrotes podres, tábuas bichosas, canas,
roupa estendida onde fulgem
sóis rotos, toalhas, lenços lavados por lágrimas humanas...
Neste Bairro de barracas-armazéns de dores
em que talvez um dia rebente
a desarmonia
de folhas, asas, raízes, frutos, bichos de flores...
Sim, surgirá enfim o paraíso de outra primeira manhã
de um dia qualquer
de primavera
sem serpente
nem maçã,
ma apenas com um homem e uma mulher
à espera
do mundo final
- em que a miséria
deixe de nos unir num sonho igual.
José Gomes Ferreira
Friday, 21 October 2011
Poema
(Quem dirigirá o Socialismo no futuro,
quando o sistema capitalista morrer?
Os proletários ou os pequeno burgueses?
Eis o segredo da luta actual, a madre da traição.)
A televisão
contribuiu muito para a minha educação
nas horas mais ingratas
da contra-revolução.
Ensinou-me sobretudo
a aguçar o gosto de usar gravatas
de seda e de veludo
- para enforcar a imaginação.
José Gomes Ferreira
Tuesday, 18 October 2011
DEIXO AO MIGUEL AS COISAS DA MANHÃ
Deixo ao Miguel as coisas da manhã -
a luz (se não estiver já corrompida)
a caminho do sul,
o chão limpo das dunas desertas,
um verso onde os seixos são
de porcelana,
o ardor quase animal
de uma romã aberta.
Eugénio de Andrade
Saturday, 15 October 2011
Segunda «Poesia de Parede»
Meu filho, queres saber
porque recusei fazer o papel de paisagem
e não entrei no elenco
da farsa que houve aí de homenagem
a Ievtuchenko?
Primeiro: porque já estou velho para pagem.
Depois, porque quase chorei quando vi
que foram fotografá-lo
debaixo do galo
do S.N.I.
Ah! Ievtuchenko,
que pensarão das tuas fotografias
e desse galo torto
(que tão bem te define)
as raivas do coração fundo
dos presos de Caxias!
E Lenine?
Que pensará o camarada Lenine
que - sabias? -
até depois de morto
fez a revolução no outro mundo?
Conclusão, meu rapaz:
nunca queiras ser cartaz.
José Gomes Ferreira
(1967 - quando da vinda a Portugal do poeta soviético Ievtuchenko)
Wednesday, 12 October 2011
Poema
(E subiu ao Trono o primeiro Governo
da Contra-Revolução.)
E agora
que os gigantes do avesso
nos querem transformar em subgente?
Que nos resta? O recomeço
do frio das algemas
e os grilhões desumanos,
para voltar inutilmente
a escrever poemas
recusando-me outra vez a ter mais de vinte anos?
Que fazer agora,
se até o Sonho nos querem roubar?
Exigir talvez
ao sol que, todas as noites dorme na lua e chora
com melancolia,
ouse de súbito acordar
- para que brilhe sempre o Espanto da Haver um Eterno Dia.
José Gomes Ferreira
Sunday, 9 October 2011
Poema
(De um entrevista qualquer num jornal
inquiridor: «Mas estarão os comunistas
dispostos a aceitar o princípio da "alternância no poder"?»
«Democracia é alternância»
repetiu de novo a embalar tédio,
um senhor de sono espesso.
Como se fosse possível - ó glória! ó ânsia! -
construir um prédio,
mudando de vez em quando
os mesmos tijolos do avesso.
José Gomes Ferreira
Thursday, 6 October 2011
IDENTIFICAÇÃO
no seu mar de tormentas;
Gemem os remadores,
mordidos pelo beijo do chicote;
E tu, poeta, como um sacerdote
da bonança,
a conjurar o mal,
a pregar confiança,
a cantar,
a cantar,
sem nenhum desespero
te desesperar!
Sabe cada ternura a pão azedo,
os acenos são ódios disfarçados;
E os teus versos, gratuitos, desfolhados
sobre as chagas da vida
como pensos sagrados
de beleza calmante e condoída!
Que humanidade tens, irmão?
De onde te vem a força, a decisão,
e esse gosto de nunca desertar?
És o Cristo, talvez...
Um Cristo sem altar
que ficasse a lutar
junto de nós,
tão presente, real e natural,
que podemos ouvir-lhe a própria voz.
Miguel Torga
Monday, 3 October 2011
(Carta mental para o filho preso.)
Agora que estás sozinho,
chora com coragem de homem
o teu destino insubmisso,
a ouvir a chuva nas grades,
caída de olhos alheios.
Rumor frio
que tanto aquece os sonhos
e dá à morte
a intimidade adormecida dos seios.
José Gomes Ferreira
Saturday, 1 October 2011
(Outro edital.)
Não afoguem o inimigo em lágrimas
embrulhadas em algodão em rama.
Não odeiem
como que ama.
José Gomes Ferreira