Saturday, 30 August 2025

Livro


Porque de tudo o que havia
ressaltavas tu, inteira, intensa, imersa no fogo,
terrivelmente límpida como uma ode ao trigo,
à beleza,
às rosas de saliva que cresciam
nos assombrados e húmidos canteiros
da minha boca,
eu te entendo
como se entende o sangue e a loucura,
como se entende o fogo e o rio,
como se entende a música e o sonho,
isto é,
gostava de te entender como coisa absoluta,
um barco, uma árvore, um farrapo de neve,
mas tu és um livro e eu um leitor de ti
que te folheia e saboreia página
a página,
cujo olhar permanece em sacrifício,
esfomeado e livre, sempre
esfomeado e livre,
sendo,
ou muito perto
de ser.
Joaquim Pessoa

Wednesday, 27 August 2025

*

 
eu quero do futuro
tudo
ou melhor
quero o futuro todo.
isso só é digno de nota
porque o amanhã que quero
é o que precisamos para ontem
e precisamos dele com a urgência do
oxigénio
mas sem a ansiedade aventureira, com a
serenidade de que a nossa tarefa não é
sobreviver o futuro mas fazê-lo.

hoje.

Miguel Tiago

Sunday, 24 August 2025

Palavras

 
Queria chamar-te tanta coisa bela
pássaro, fogo, vento, caravela
terra, semente, pão
Chamar-te amigo
e inventar as palavras que não digo
com medo de as dizer sem ter razão.
Maria Eugénia Cunhal

Thursday, 21 August 2025

Assim com as palavras

 
Assim com as palavras envolvidas
pela raiva dos potros sangue novo
encurralado nas veias repartidas
pelas ruas calado a gritar povo
e ser uma cantiga um tiro um lenço
para as lágrimas doendo sobre o rosto
do meu país-abril onde me venço
varado pelas balas do desgosto
ou pela fome cuspida na poesia
aberta em cravo angústia ferramenta
com que o braço armado forja o dia
se a raiva do poema não aguenta.
Joaquim Pessoa

Monday, 18 August 2025

O Mar


Um ser único, nem sangue.
Uma só carícia, morte ou rosa.
Vem o mar e junta as nossas vidas
e sozinho investe e reparte-se e canta
na noite no dia no homem na criatura.
A essência; fogo e frio; movimento.
Pablo Neruda

Friday, 15 August 2025

**

 
É outra vez abril
- e tão perfeito é o azul
que o estendo
ao longo do meu corpo.
Não sei de ninguém tão bem vestido!
Eugénio de Andrade

Tuesday, 12 August 2025

Estou mais perto de ti porque te amo

 
Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.
Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.
Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.
Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.
Joaquim Pessoa

Saturday, 9 August 2025

Cantiga de Abril

 
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste país,
a conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.
Qual cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever,
com que palavras gritar!
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Essa paz do cemitério
toda prisão e censura,
e o poder feito galdério,
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por política demente.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim altiva e nua
com força que não recua,
a verdade mais veraz.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Jorge de Sena

Wednesday, 6 August 2025

Amor de índio

 
Tudo que move é sagrado
E remove as montanhas
Com todo cuidado, meu amor
Enquanto a chama arder
Todo dia te ver passar
Tudo viver ao teu lado
Com o arco da promessa
No azul pintado pra durar
Abelha fazendo mel
Vale o tempo que não voou
A estrela caiu do céu
O pedido que se pensou
O destino que se cumpriu
De sentir teu calor
E ser todo
Todo dia é de viver
Para ser o que for
E ser tudo
Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado, meu amor
A massa que faz o pão
Vale a luz do teu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes
O tempo acordado de viver
No inverno te proteger
No verão sair pra pescar
No outono te conhecer
Primavera poder gostar
No estio me derreter
Pra na chuva dançar
E andar junto
O destino que se cumpriu
De sentir teu calor
E ser tudo

Gabriel Sater

Sunday, 3 August 2025

Herança

 
Neto de proletário, filho de proletário,
cedo me ensinaram a missão
fundamental de todo o proletário:
fazer o que for preciso
- vender a alma, vender a carne,
vender os teus irmãos –
para deixares de ser o que vieste a ser,
um proletário.
Oh insolvência, tu é que sabes
o nome exacto das coisas.
Juan Bonilla

Friday, 1 August 2025

No entrar como turista en el corazón de una mujer

 

haciendo fotos
dejando latas de cerveza
buscando sólo catedrales inmensas
y estatuas transparentes

con la mochila llena de mapas
y haciendo comidas rápidas

porque hay un país
siete ciudades
una cordillera
y un invierno
en el corazón de una mujer

no bebas sólo un vaso de Mar allí

no entres en avión
toma el tren de la media luna
no reveles allí tus fotos en una hora

si no hace demasiado frío entra desnudo
no lleves paraguas
y sobre todo no tales árboles en el corazón de una mujer
no acostumbran volver a crecer.

José María Zonta