Wednesday, 18 June 2025

 
Se não puderes ser um pinheiro, no topo da colina,
Sê um arbusto no vale — mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
um arbusto, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um arbusto, sê um pouco de relva,
E dá alegria a algum caminho.
Se não puderes ser almíscar, sê, então, apenas uma tília —
Mas a tília mais viva do lago!
Não podemos ser todos capitães; temos que ser tripulação.
Há algo para todos nós aqui.
Há grandes e pequenas obras a realizar,
E é a próxima a tarefa que devemos empreender.
Se não puderes ser uma estrada, sê apenas uma senda.
Se não puderes ser Sol, sê uma estrela;
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso —
Mas sê o melhor do que quer que sejas!
Douglas Malloch

Sunday, 15 June 2025

Não me deixes só


Ouve-me, falo-te esta noite

e parece-me falar ao mundo.

 

Quero dizer-te que não me deixes só

nesta estrada longa sem fim

e tem os dias curtos.

 

Quero dizer-te

que quatro olhos veem melhor,

que milhões de olhos vendo mais longe,

e que o peso dividido sobre os ombros torna-se leve.

 

Quero dizer-te

que se te apoiares em mim e eu me apoiar a ti

não podemos cair

mesmo que a tempestade nos siga em rajadas.

 

Os pássaros voam em bandos, cantam em bandos,

um canto só é lamento e morre no ar.      

 

Não abaixes os olhos, quero-te amigo á mesa;

e não é verdade, que sejamos diferentes

estendo-te os braços e chamo-te de irmão...

 

Irmão eu sou e companheiro

dobrado para arrancar os espinhos que ensanguentam os pés:

irmão e companheiro levantados para rasgar as nuvens

e apagar o relâmpago:

irmão e companheiro

 

Um não conta,

nascemos para cantar juntos

e não deixar um legado de lágrimas repito de lágrimas.

 

morres e ficas nadando

no leito do rio que desagua no mar,

na cama que conta a história de todos os tempos

 

E serão dias como estes: com nascer e sol

os galos que cantam, as árvores que florescem,

homens na terra e biliões de estrelas no céu.

 

Dias assim: com a luz nas ruas,

as mesas postas, as crianças brincando,

e o amor nas camas com boca de cordeiro e de lobo.

 

Dias assim: contigo e comigo

com outros nomes para consultar livros,

experimentar, julgar os vivos e os mortos

se eles merecem... se nós merecemos o perdão...

 

Perdão pelas guerras em cadeia, pelos massacres

para Hiroxima queimada,

para os poetas de tiro.

 

Perdão para as câmaras de gás

pela injustiça codificada,

para os infames iluminados no paraíso da terra,

para Cristo na cruz e o carrasco no altar.

 

Estou-me confessando

Quem me absolve?

Quem te absolve?

 

História não,

se pudermos fazer a paz da guerra,

chorando alegria,

liberdade escravidão,

odeio amor

e não o fazemos.

 

Na história, não

Se pudermos derrubar as paredes de pedra óssea

que levantamos todos os dias com as mãos sujas,

tu e eu, com as mãos sujas, e não o fazemos.


Ignazio Buttitta

Thursday, 12 June 2025

VOLTA ATÉ MIM NO SILÊNCIO DA NOITE

 
Volta até mim no silêncio da noite
a tua voz que eu amo, e as tuas palavras
que eu não esqueço. Volta até mim
para que a tua ausência não embacie
o vidro da memória, nem o transforme
no espelho baço dos meus olhos. Volta
com os teus lábios cujo beijo sonhei num estuário
vestido com a mortalha da névoa; e traz
contigo a maré cheia da manhã com que
todos os náufragos sonharam.
Nuno Júdice (1949-2024)
in 'O Movimento do Mundo', 1996

Monday, 9 June 2025

ONDE ME LEVAS, RIO QUE CANTEI...

 
Onde me levas, rio que cantei,
esperança destes olhos que molhei
de pura solidão e desencanto?
Onde me levas?, que me custa tanto.
Não quero que conduzas ao silêncio
duma noite maior e mais completa,
com anjos tristes a medir os gestos
da hora mais contrária e mais secreta.
Deixa-me na terra de sabor amargo
como o coração dos frutos bravos,
pátria minha de fundos desenganos,
mas com sonhos, com prantos, com espasmos.
Canção, vai para além de quanto escrevo
e rasga esta sombra que me cerca.
Há outra face na vida transbordante:
que seja nessa face que me perca.
Eugénio de Andrade, in 'As mãos e os frutos'

Friday, 6 June 2025

Canção da tristeza alegre

 
Esquece estas mãos
Estes lábios e dedos e braços
De quem é essa voz que me toca
De quem são estes passos?
De quem os gestos
A secar no estendal de outra lua
Esta roupa que juntos vestimos
E te deixa mais nua?
De quem a voz
Que hoje vem segredar me ao ouvido
Coisas que dizes
Sem que eu tenha sentido?
Ai que tristeza
Não haver um olhar na varanda
Que pudesse gritar a alegria
Que no meu fado ainda anda
De quem a noite
Tão mais noite que a noite que tenho
Que me faz perguntar às estátuas
De que rua é que venho?
Quem me procura
E me fala ao ouvido em segredo
É o teu braço que guia no escuro
O meu ombro com medo.
António Lobo Antunes

Tuesday, 3 June 2025

Domingo no campo

 
Aos domingos, quando os sinos tocam
de manhã, o que neles se toca é a manhã,
e todas as manhãs que nessa manhã
se juntam, com os dias da infância que
nunca mais acabavam, as casas da aldeia
de portas abertas para quem passava,
as ruas de terra batida onde as carroças
traziam as coisas do campo, os cães que
corriam atrás delas, uma crença no sol
que parecia ter expulso todas as nuvens
do céu, e a eternidade desses domingos
que ficaram na memória, com o ressoar
dos sinos pelos campos para que todos
soubessem que era domingo, e não havia
domingo sem os sinos tocarem a lembrar,
a cada badalada, que os domingos não
são eternos, e que é preciso viver cada
domingo como se fosse o primeiro, para
que o toque dos sinos não dobre por
quem não sabe que é domingo.
Nuno Júdice

Sunday, 1 June 2025

A vida

 
A vida é uma dádiva.
A vida é uma dívida.
A vida é uma dúvida.
in "Os dias não andam satisfeitos"