Sunday, 30 March 2025

Amor

 
Mulher, teria sido teu filho, para beber-te
o leite dos seios como de um manancial,
para olhar-te e sentir-te a meu lado e ter-te
no riso de ouro e na voz de cristal.
Para sentir-te nas veias como Deus num rio
e adorar-te nos ossos tristes de pó e cal,
para que sem esforço teu ser pelo meu passasse
e saísse na estrofe - limpo de todo o mal -.
Como saberia amar-te, mulher, como saberia
amar-te, amar-te como nunca soube ninguém!
Morrer e todavia
amar-te mais.
E todavia
amar-te mais
e mais.
Pablo Neruda

Thursday, 27 March 2025

bravos os que lutam

 
levantemos nossos punhos como lanças,
nossas almas como muralhas,
ergamos nossos rostos como bandeiras de vitória,
mesmo quando formos derrotados,
que nestas batalhas de pão e dignidade,
resistir é já brava conquista.

Miguel Tiago

Monday, 24 March 2025

- sem título -

 
ai esse abraço
que dura por querido
que aperta sentido
e é um beijo.

Miguel Tiago

Friday, 21 March 2025

- sem título -

 
há dias em que é impossível escrever,
porque as letras fugiram.
talvez porque tenham abandonado as mãos,
ou fugido com a embriaguez dos dias felizes.
há dias em que é impossível escrever,
porque os versos se encravam na ponta dos dedos,
ou mesmo nas entranhas onde não se deixam ver.

há dias em que é impossível escrever,
porque a inspiração, talvez, se tenha ido dissolver
numa expiração.

há dias em que é impossível escrever
porque a vida te afoga em silêncio as estrofes,
porque a tinta da alma se te esvai,
e tu à distância, podes apenas ver a mancha
que ela deixa pelo caminho.

Miguel Tiago

Tuesday, 18 March 2025

A fábrica

 
Como um enxame,
o zumbido dos televisores. Será assim
a noite inteira.
A luz difundida por esses ecrãs,
se somada,
daria para derreter milhares de corpos.
Mas este é o pior dos holocaustos:
sem grilhões,
sem divisas,
sem valas comuns.
Apenas o leito quotidiano. E retinas
para sempre escancaradas
na hipnose do merecido descanso.
Os bairros
amontoam-se como plaquetas.
Os candeeiros poupam
a opacidade da insónia,
oferecendo
um tecto onde abrigar olhos
injectados pela limalha das jornadas cumpridas.
Serão em breve
necessárias gruas para levantar esses corpos,
prostrados no sal
do próprio suor. Serão em breve
necessárias
electrocussões capazes de restabelecer
a biologia.
O transe dos mortos,
reabilitando-os,
iludindo-os de vida.
Transeuntes da decadência,
soterrados sob
camadas e camadas
de detritos verbais.
Eis uma religião
despojada da sua liturgia:
não há ascensão,
é-vos concedida
a todo o momento
a comunhão com a fonte da vida.
É essa a única dádiva,
morrer
e tornar a morrer.
Vasco Gato

Saturday, 15 March 2025

Não passarão

 
Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!
Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.
Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.
Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!
Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!
Miguel Torga
(Poema dedicado a Dolores Ibarruri)

Wednesday, 12 March 2025

História antiga

 
Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da nação.
Mas, por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
Miguel Torga

Sunday, 9 March 2025

alameda

 
ele passeou pela estreita alameda, sob a sombra das árvores. a pele dura recebeu o fresco e suavizou a sua aspereza.

os raios de sol tornaram-se mais e mais oblíquos, até que a lua surgiu por sobre as copas como coroa luminosa.

e entrecortada pelos passos, a luz, afirmava-se cada vez mais distinta, porque a escuridão se fechava mais densa.

Miguel Tiago

Thursday, 6 March 2025

- sem título -

 
enquanto me vejo ao espelho,
trespasso-me pela translucência
e só vejo a parede vazia atrás de mim.

um dia, surgirei opaco,
até lá trabalho a substância e o sangue
e deixo o ar respirar-me, sem fim.

Miguel Tiago

Monday, 3 March 2025

- sem título -

 
amo as tuas palavras,
as tuas gotas de chuva sobre mim,
amo o teu sussurro pela noite,
a lua na janela enquanto me amas.

amo como me amas sem fim.

Miguel Tiago

Saturday, 1 March 2025

Noite em claro

 
Já passei noites em claro
À falta do teu amparo
Quase à beira da loucura
Sonhar contigo acordado
É pedir por tudo ao fado
Que ilumine a noite escura.
Ainda guardo o teu vestido
Que tu deixaste esquecido
Pendurado à cabeceira
Deixa espalhar o perfume
Que ilumina o meu ciúme
E me acorda a noite inteira.
Quem te leva ao coração
A ter outra pulsação
Quando o meu bate perdido
Mas se um dia ele se atrasa
E quiseres voltar a casa
Ainda tenho o teu vestido.

João Monge