Saturday, 30 December 2023

revelação


Wednesday, 27 December 2023

- se -

se hoje fosse o último dia
chorava uma lágrima
que rolava enquanto, à distância
na curva, te perdia.

se hoje fosse a última noite,
mais não me restaria
além do sorriso desprendido,
mas tão sem-sentido. 
 
Miguel Tiago

Sunday, 24 December 2023

- sem título -

na relva húmida
os pés descalços. 
 
Miguel Tiago

Thursday, 21 December 2023

assalto

deito mãos ao céu que assalto,
contigo braços levantados,
ascenderemos à vida
que nos quiseram roubar. 
 
Miguel Tiago

Monday, 18 December 2023

UMA FATIA DE PÃO...


Uma fatia de pão,
um pedaço de toucinho,
um punhado de azeitonas
e um copo de vinho azedo,
são ao que chega o salário
que aos jornaleiros se paga
pelo que comem os ricos
às suas mesas repletas.

Armindo Rodrigues

Friday, 15 December 2023

- sem título -

e, porém, o vazio liberta
como asas.
podes vaguear por todas
as ruas e as casas.

ou fingir-te ser e, pouco a pouco,
apenas morrer.  

Miguel Tiago

Tuesday, 12 December 2023

- sem título -

sinto sempre a tua falta quando acordo,
e da prisão de amar-te
que me priva da liberdade. 
 
Miguel Tiago

Saturday, 9 December 2023

vícios

viciei-me em cigarros depois de amar,
em vinho ao jantar,
viciei-me em comprimidos para dormir,
em cerveja para poder rir,

viciei-me no céu nublado e nos raios de luz que me fazem chorar,
viciei-me nas árvores que cobrem o manto alpino da serra
nas noites sem luar,
nas praias sem mar. 
 
Miguel Tiago

Wednesday, 6 December 2023

salvation

cleansing my sins
forever have I been
waiting salvation on my knees,
drinking your blood, sacred flesh
kissing my lips,
and though I perish,
I will never leave the flock,
for I am impriosioned between the walls
of the quarter's parish.  

Miguel Tiago

Sunday, 3 December 2023

versus

deixei para trás o julgamento
com ele o pensamento
deixei para trás as dores
com elas o contentamento. 
 
Miguel Tiago

Friday, 1 December 2023

os sonhos

ao longo do corredor estreito
comprimo-me e sonho contigo
num quarto de hotel com a luz a raiar p'la janela
em traços oblíquos de tinta rasgando o fumo
do cigarro denso que espessa o ar.

na porta do quarto número tal,
olhando para um lado e depois o outro,
bato os nós dos dedos e fulmina-me uma ferida
que o passado me cravou sem cicatriz à vista.

e o sonho esvai-se
quando o teu sorriso afinal é um grito. 
 
Miguel Tiago

Thursday, 30 November 2023

*

deixei as mãos sob o pano preto
para que não visse mais
as armas dos meus próprios crimes. 
 
Miguel Tiago

Monday, 27 November 2023

antes que partas

a minha caveira podia estar descoberta
ao vento do deserto,
expondo os versos de um esqueleto
tão pouco poético,
os escaravelhos sagrados podem satisfazer-se
das sílabas que voam aqui tão perto,
e as crisálidas converter-se-ão,
depois de lagartas,
não em mariposas azuis,
mas em anjos de solidão,
antes que partas
à lonjura e à linha infinita da imensidão. 
 
Miguel Tiago

Friday, 24 November 2023

tudo o que és

quando o pensamento se esvai como sangue
rubro e vivo, porém, incontido,
e pelos espaços entre os dedos escorre a areia
intemporal dos desertos irrefragáveis da vida,
da vida pura, da vida suja, da vida morta,
quando entre as nuvens vês a escuridão de um céu
sem lua, negro de horas cujo sol não abençoou,
quando a alma se te foge dos arrumos onde a guardaste,
cuidada, bem aprisionada, acondicionada nas estantes
desse armário infinito, de madeira roída pelos bichos
da memória que te corróem o cérebro exausto,
quando tudo te passa à frente à velocidade do metropolitano
do futuro e na tua cara correm os ventos quentes do abismo,
viras as costas à mortalidade, porque tudo já passou sem permissão,
porque tudo o que fizeste nunca mereceu perdão,
porque tudo o que és se condensa no espaço fechado de uma mão. 
 
Miguel Tiago

Tuesday, 21 November 2023

luar

acordo no limiar do tempo
e na beira do lago de fogo
que ao debruçar me reflecte
os dias que perdi ao buscar-te.

acordo à alvorada escura
e no centro fulgurante do relâmpago
que me queima as lágrimas
e me marca a pele em brasa.

acordo ao raio perpendicular
e à luz divina do sol que passa as nuvens
e me ilumina a morte e o silêncio,
sedutoras imagens da noite e do luar. 
 
Miguel Tiago

Saturday, 18 November 2023

O QUE SE FAZ...


O que se faz fica feito,
seja a razão boa, ou má.
Por proveito, ou desproveito,
o tempo responderá.

Armindo Rodrigues

Wednesday, 15 November 2023

vazia

como fosse esta noite
uma de inverno,
sendo verão.

como fossem flores
as pedras negras
cuspidas da boca de um vulcão.

como incandescente ficasse
a cratera do tempo.

como cheio fosse o verso
meticuloso e bem organizado
da poesia vazia. 
 
Miguel Tiago

Sunday, 12 November 2023

lucifer

quando as veias pulsam chamas
e fazemos de nós instrumento do mundo
então as forças são divinas,
que deus és tu e eu e o resto.

e somos também os demónios
que portam a luz
e o fogo purificador
dos silêncios e cumplicidades
dos nossos confessionários.  

Miguel Tiago

Thursday, 9 November 2023

pureza

quando pouso no cinzeiro
o fumo dos dias, queimando a vida
lenta
serena
pouco ponderadamente,
dá-me uma vez mais o ar,

puro. 
 
Miguel Tiago

Monday, 6 November 2023

pousar

quando pouso em ti
os olhos e as mãos,
um sopro
rápido e um olhar,
quando pouso em ti
os lábios num beijo,
me levanto no ar,
... falta-me respirar. 
 
Miguel Tiago

Friday, 3 November 2023

amiba

que posso fazer se o meu coração não rima?  

Miguel Tiago


Wednesday, 1 November 2023

em chamas

ígneas são as palavras e os punhos da luta
dos homens mais fortes que vulcões.


temperatura nuclear
força telúrica capaz de fazer vibrar
os átomos e de lhes fazer saltar neutrões. 
 
Miguel Tiago

Monday, 30 October 2023

-reverência-

quando vieres junto de mim, beijo-te
a palma da mão em reverência
que há quem nunca na vida inteira
tenha a digna experiência

de se conhecer ao espelho
dos olhos dos outros. 
 
Miguel Tiago

Friday, 27 October 2023

abertura

quando nascem palavras não pedem licença
brotam em torrente, por vezes caótica,
ordenemo-las como pudermos
assim nos encontremos ao fundo das ruas por onde caminhamos.

ruas estreitas, longas porém,
onde nos invernos crescem poças de água pelo chão.
que marcam os passos até, minutos corridos, se evaporarem
sem aparente razão. 
 
Miguel Tiago
(Letras Ígneas 6.5.2009)

Tuesday, 24 October 2023

sem título

pequena morte
vida grande
um momento presa na garganta. 

Miguel Tiago

Saturday, 21 October 2023

sem título

não há poemas por encomenda
nem amor com hora marcada na agenda
nem sempre um encontro deixa de ser a soma de dois desencontros, 
mãos unidas na distância do tempo.
 
Miguel Tiago

Wednesday, 18 October 2023

BEBO, COM UM NACO DE PÃO...


Bebo, com um naco de pão com chouriço
e um grupo de amigos,
um copo de vinho.
No dia nevoento refaz-se o bom tempo.
Bebemos, felizes, à saúde de todos,
à paz entre todos,
à abundância entre todos.
E a seguir cantamos em louvor da alegria.

Armindo Rodrigues

Sunday, 15 October 2023

sem título

era impossível não olhar, fica sabendo
nem se tratava de querer
a espuma do mar a espraiar-se pela areia também não escolhe demorar-se
e no entanto não tem opção. 

a praia mais mar mais ar mais sol mais areal que conheci guardaste-a na tua pele. 

Miguel Tiago

Thursday, 12 October 2023

-_-

coração relâmpago
estala sempre muito antes
do trovão. 

Miguel Tiago

Monday, 9 October 2023

-_-

coração trovão
bate sempre muito depois
do relâmpago. 

Miguel Tiago

Friday, 6 October 2023

sem título

aparelhar a alma
e zarpar
um sopro branco
a desaparecer no breu
de uma bruma marítima 
em busca dos lugares 
em que perdido 
um fósforo ainda arda. 

Miguel Tiago

Tuesday, 3 October 2023

um gajo cresce

 
quando era miúdo não conseguia descascar alcagoitas
com as mãos 

e agora quer transformar o mundo. 


Miguel Tiago

Sunday, 1 October 2023

sem título

já basta que nos apartemos

- amantes na estação, um na plataforma, outro subindo a carruagem  

- lentamente - como se desentrelaçam as mãos até à ponta dos dedos 

- do calor em morte

se deixares secar o rio que te corre por dentro

é mais fácil que todos o atravessem

mas depois quem mergulharia ou 

juntava caudal à torrente?

 

Miguel Tiago

Saturday, 30 September 2023

*

ruma deserta a embarcação
na bruma alvorescente
se a salvares em alto mar
reclama propriedade
leva salva-vidas
que esta nave não cavalga, navega
mas desafia a tripulação 
como um cavalo selvagem. 

Miguel Tiago

Wednesday, 27 September 2023

sem título

acredito
que no fim
o nosso sonho 

somos nós. 

Miguel Tiago
 

Sunday, 24 September 2023

sem título

nem só o que ainda não existe é belo.  

Miguel Tiago

Thursday, 21 September 2023

sem título

escolho a viagem
escolho a vertigem
atravessar a nuvem
a cinza a lava e a fuligem
e cair inteiro na folhagem branca 
das ondas efervescentes
escolho, se puder, a mensagem
e escrevo-ta em letras iridiscentes
sobre uma rocha negra

entre ir e ficar
escolho estar 
mas de passagem

escolho o olho
em vez da margem
a sede
em vez da miragem.
 
Miguel Tiago

Monday, 18 September 2023

DEUSES...


Deuses os houve numa noite longa.
Criou-os o pavor e a humana miséria.
Agora, já não servem para nada.
Fazem asco,
e são talvez vergonhosos.
Se não morreram para sempre,
é porque ainda por aí
há quem não tenha despertado.

Armindo Rodrigues

Friday, 15 September 2023

sem título

este mar sempre vivo
guarda secretamente
o bater dos nossos corações. 

Miguel Tiago

Tuesday, 12 September 2023

sem título

só por entre o banal
se pode cultivar o sublime
sem contradições 
nem fariam falta os adjectivos

por exemplo

por só conseguir manter vivos cactos 
é que me deslumbram as orquídeas. 

Miguel Tiago

Saturday, 9 September 2023

cicatrizes

dissolvo na minha taça
gotas do teu veneno
(ou meu?) 
com o receio eterno de ter ficado contaminado
e de vir a ser obrigado
por imperativo moral
a tatuar no peito
do lado esquerdo
uma caveira e duas tíbias cruzadas. 

Miguel Tiago

Wednesday, 6 September 2023

funda poesia

depois de o sol se pôr 
eu sei a noite 
que adivinha o dia 
depois de o coração bater 
eu sei o sangue 
e sinto entre artérias poesia

vinham dizer-me a toda a hora
que tenho hora marcada 
pela lua vazia 
acima de tudo pelas palavras 
de quem mas dizia

e foi preciso ouvir os mortos
saber quantos anos vivem 
lentamente
nas cascas das árvores 
para surfar em pequenas nuvens a maresia
e rebentar na espuma 
por onde a manhã se sumia
para poder ver aceso o tempo 
tempo rastilho 
tempo farol
tempo contado
tempo roubado 
a todo o tempo que nunca nos foi dado

fixaram-me dois dias
um para nascer, outro para morrer
e os outros, deram-mos
embrulhados na bruma
funda

funda fisga
que eu disparo

fecho um olho 
e aponto à cabeça de gigantes. 

Miguel Tiago
 

Sunday, 3 September 2023

vem

secretamente ter comigo
nem eu preciso saber
mas vem.
 
Miguel Tiago
 

Friday, 1 September 2023

sem título

eu sei que de mãos dadas
podemos voar sobre a vastidão do deserto
e caminhar com passos de gigante
sobre muros e cordões policiais
fazer deflagrar chamas e revoltas
capazes de acordar milhões de escravos

eu sei 


nós somos a nossa era. 

Miguel Tiago

Wednesday, 30 August 2023

sem título

vou escrever este poema para ti.


leste-o? 


Miguel Tiago

Sunday, 27 August 2023

sem título

o melhor disparo

é com a língua no gatilho. 


Miguel Tiago

Thursday, 24 August 2023

leva-me

 
leva-me ao teu deserto
à tua floresta
ao teu recife
onde não importa que digam os astros
que faremos sempre o nosso destino
com as mãos

com a voz

com os sins com os nãos
que importa
a fúria do mar
se nos olhos de um gato não se pode morar.
 
Miguel Tiago

Monday, 21 August 2023

sem título

diz-me que já viste
na noite escura todas as constelações
que todos os primeiros beijos já foram dados
que dançaste tangos e sambas
sob o calor do trópico de capricórnio
e que viste aves de todas as cores no paraíso
diz-me com voz pequena
que já viveste tudo
e que já não esperas nada
a não ser fazer tudo pela primeira vez
de novo
comigo.
 
Miguel Tiago

Friday, 18 August 2023

O VERME


Fosse o verme nuvem,
por força teria
saudades do chão.

Armindo Rodrigues 

Tuesday, 15 August 2023

sem título

as pessoas viram-nos de mãos dadas
enquanto nos floresciam na pele os jacarandás
num céu boreal
tão efémero
tão luminoso 
um batalhão de guerreiros de facas nos dentes
serenos na luta 
voamos 
e vencemos as águias 
as águas
e quem
à distância pudesse questionar que raios
todos.
 
Miguel Tiago

Saturday, 12 August 2023

sem título

já saber que existes
é um mistério 
como uma papoila sozinha
pintando um campo inteiro. 

Miguel Tiago

Wednesday, 9 August 2023

arena

as flechas não matam os cobardes
tombam os audazes apesar da sorte
afinal de contas a vida é feita de contradições
e não havendo provérbio que nos valha

o futuro pertence a quem souber usar sem a amar a violência

imagina

nós todos libertos de tudo
só o passado a correr-nos no sangue

nós somos animais de grande porte
a quem já ditaram a morte.
 
Miguel Tiago

Sunday, 6 August 2023

sem título

não prometo nada
que te promete a árvore
que no sol a pique não te deixa sem sombra? 

Miguel Tiago

Thursday, 3 August 2023

tanto

quero ser a besta puxando o arado
que abre a tua terra
como a áspide nas garras do teu serpentário. 

Miguel Tiago

Tuesday, 1 August 2023

sem título

agora
sobem-me em cada respiração estrelas
à boca
que tinhas guardado dentro de mim. 

Miguel Tiago

Sunday, 30 July 2023

sem título

eu vim do fim do mundo
e o princípio do mundo agarrou-me por uma mão
quando eu estava prestes a cair. 

Miguel Tiago

Thursday, 27 July 2023

1 g

deste-me 1g de tudo quanto me podia fazer suar e bombar a todas as artérias o sangue.

parece pouco. pois.

bastava um sopro. 


Miguel Tiago

Monday, 24 July 2023

mind the gap

entre um chão pavimentado de eus
e um céu inteiro de nós
cabem mais palavras do que existem. 

Miguel Tiago

Friday, 21 July 2023

estou a ver que nem na planície deserta


onde estavas quando perguntei por ti

deram-me sempre a mesma resposta

não vi e um número de um hospital

obrigado

está tudo bem.

 

Miguel Tiago

Tuesday, 18 July 2023

ACENDA-SE NA NOITE...


Acenda-se na noite o facho prodigioso.
Enquanto sobre a terra impere a iniquidade,
ninguém poderá ser inteiramente livre.

Armindo Rodrigues

Saturday, 15 July 2023

sem título

não há maior escuridão do que a da sombra que os oceanos lançam sobre o seu fundo.  
 
Miguel Tiago

Wednesday, 12 July 2023

ok

já toda a gente percebeu
que o melhor que podem fazer
os poetas
é morrer
em silêncio
só assim ecoam. 

Miguel Tiago

Sunday, 9 July 2023

sem título

pássaro azul
arqueei o peito ao céu
com os braços para trás 
e nele cresceu uma casa para ti
de porta sempre aberta
para quando fores voar
regressares se quiseres. 

Miguel Tiago

Thursday, 6 July 2023

C.

este poema não é uma canção de amor
é uma bandeja de prata envelhecida com flores frescas antes de serem arrancadas
só para que o escritor ainda que ao longe
possa ver o teu sorriso barco à vela
em dia de vento cantante
vir por esse largo mar afora do viso à manteigada
trazendo uma canção por parir
há 500 noites em gestação
ao longe o escritor contemplará os barcos engalanados
a santa na proa
desse círio dos séculos
e deitará as cartas na mesa
tudo copas. 

Miguel Tiago
 

Monday, 3 July 2023

aqui

 
à beira do mar
a gente pode não saber
em que embarcação vem a morte
mas sabe sempre 
que essa barca não se afunda. 
 
Miguel Tiago

Saturday, 1 July 2023

sem título

de tão doloridas
algumas tatuagens 
só podem ser removidas
com uma lâmina romba. 
 
Miguel Tiago

Friday, 30 June 2023

sem título

haverá sem dúvida um planeta inteiro
para quem chegar ao fim desta marcha
que se inicia no teu beijo
como duas esporas na minha carne
e eu todo inevitável 
galopo. 

Miguel Tiago

Tuesday, 27 June 2023

sem título

 

minerar da sempiterna escuridão

o mais pequeno pedaço de caos

e ser um diamante.

 
Miguel Tiago

Saturday, 24 June 2023

mãos na mesa

a gente bem tenta
chegar de novo aonde de nunca partiu
mãos na mesa jogo limpo
nada na manga
e a gente atira-se pela primeira vez para o lago sem saber que está congelado
e fica o nosso coração a bater muito pouco, ténue percussão sob o gelo sobre o que os outros patinam
e depois é preciso todo aquele tempo 
para que se rompam as leis da termodinâmica só com a força do corpo humano
o tempo para que um coração em hipotermia bata vezes suficientes para ser capaz de fundir um lago de gelo.

Miguel Tiago

Wednesday, 21 June 2023

sem título

bateu no meu coração a meia noite
uma orquestra de sinos tocou em todos os campanários
um requiem 
uma flor prestes a desprender-se da haste
ainda me lançou os braços 
os meus, caídos, 
deixaram-se ficar. 

Miguel Tiago
 

Sunday, 18 June 2023

NOS MUROS ESCALAVRADOS...


Nos muros escalavrados
o debate ferve,
de entusiasmos ingénuos,
de acusações brutais,
de aspirações excessivas,
de sentenças correctas,
contra o custo da vida,
contra o desemprego,
contra as ameaças de guerra,
contra a acção da polícia.

Armindo Rodrigues

Thursday, 15 June 2023

amor em tempos de corona

hashtag fica em casa
apesar de a cristina dizer que só afecta chineses
a igreja universal fechou e agora na rua não se faz nada
aquele livro que lias na esplanada 
lês em casa em directo na internet
no canal com mais gente a ver
copo de vinho ou sumo de arando, tanto faz 
na internet parece igual
o pior é esta coisa de a natureza humana afinal não ser egoísta 
o contrário do que sempre te disseram os egoístas 
e estarmos todos na verdade mortinhos para viver de verdade
e isso fechado em casa é mais difícil 
que o gato não é um animal social 
que o cão é servil 
e o peixe morre antes do fim da quarentena 
pássaros em gaiolas nem pensar
já bastamos nós amarrados e de asas cortadas
a engolir calamidades públicas em estado de emergência
sem direito de resistência
que é o mais poético dos direitos
ah, mas o pior é mesmo essa nossa dupla hélice de programação 
que vai amar até ao fim do mundo
se há amor em filmes de mortos-vivos 
imaginem em realidades de vírus
corações a bater desalmadamente
gente descoroçoada por um desgosto virtual
há de tudo
e novos entusiasmos 
sem poder convidar ninguém para um copo de vinho 
a não ser em videoconferência 
e sexo só não sexo
mas há lá quem diga que não é verdade a sinapse louca 
e a embriaguez de quem bebeu saudades de quem nunca viu
um dia
quando tudo isto passar, todos os amores de internet,
ou quase todos, vão procurar o mesmo espaço e abraço,
uns deles marcarão segundo encontro.
outros não.
nenhum amou menos, nenhum amou mais.
 
Miguel Tiago

Monday, 12 June 2023

sem título

 escrevi-te um poema
deixei-o no mar
e quando vogavas as vagas
a tua proa cortou
os versos em dois

assim as ondas
depois da barra
os faroleiros
com estrelas nos olhos


te abraçaram
e ao longe
cantaram embriagados
uma canção de amor. 
 
Miguel Tiago

Friday, 9 June 2023

sem título

parece um desperdício
tanta gente à espera do mar
tanto mar à espera da gente. 
 
Miguel Tiago

Tuesday, 6 June 2023

a vida e a morte da estrela polar

lá no berço mais antigo
onde se aprende o norte do universo
pelo cheiro das galáxias
caminhamos a vereda íngreme da verdade
o sol põe-se o sol nasce
e nós juntamos o que pensamos hoje em cima
dos milhões que pensaram antes
e a nossa matéria
toma de si própria a consciência possível
no meio da tempestade
e do vento indecifrável das poeiras estelares
a maternidade de nós todos é uma estrela
e nós somos, até ver, na versão menos romântica estrelas mortas
a estrela polar morre no equador
porque escrevo no hemisfério norte
mas é no equador que nasce o cruzeiro
e a terra
acho que a terra também nasceu lá no sul
lá onde a vida não é um sucedâneo espanhol de chocolate
é cacau
onde a coca não é ina, é folha,
o nosso norte é o sul.

mas lá pelo sul também já espalharam norte.

Miguel Tiago


 

Saturday, 3 June 2023

clímax

molha na Língua
dois dedos de poesia
toca bem fundo
e suspira. 

Miguel Tiago

Thursday, 1 June 2023

sem título

quando cheguei
o quarto já estava desarrumado
a sala estava quase
eu virei o resto
todo o pó de um arco-íris que nunca veio
já estava no chão
o relógio marcava meia-noite
meia-noite e umas quantas traças nocturnas de verão
que eu não trazia quando entrei
as teias tecidas no canto da cozinha
eram de aranhas que encontrei na despensa
depois de noites inteiras a procurar
e o sótão sem janelas
só tinha a limpidez de uma noite depois da chuva
alguma parte disto
será minha
uma herança de milhões
de genes
perdidos no atlântico
que ainda hoje andarão nas vagas à deriva
um caminho que o vento traçou em ondas
de breu
uma viagem cujo destino não vai a lado nenhum
ou então já lá estou
dorme
dorme
meu menino que a maezinha logo vem
foi lavar os coerinhos à fontinha de belém
e uma toca de cria de lobo ibérico sem escolha
à espera de predador que o valha
sendo comido a pouco e pouco
por animais sem paladar
estes são os dias em que tudo o que agradecemos é pouco
porque uma toca é uma concha onde não mora mais ninguém
e ainda bem
somos o vento na ponta do dedo molhado pela língua
o norte no céu depois de ver onde cai o sol
somos a espingarda que não dispara porque é um brinquedo que esculpimos em madeira
a noite e o beijo na testa
que no fim do dia espreita com a lua não importa se está nova
somos o princípio e o fim de nós todos porque só há todos com nós
e um dia quando sussurrar no ouvido de alguém
desarruma-me
estarei a mentir
porque desarrumado já estava desde o dia, a noite,
em que junto aos trópicos entrei no quarto pela primeira vez.
 
Miguel Tiago

Tuesday, 30 May 2023

sem título

riscaste de azul o meu coração
e ele foi por aí fora meteoro
cruzando o céu em estrela cadente
quando cair
à volta não restará mais do que o deserto
e no centro um meteorito 
 
Miguel Tiago

Saturday, 27 May 2023

sem título

o vento a bater as asas
e as árvores desde a sua casca a testemunhar
altos voos em concerto da sua plumagem extrema
um caminho à vista pelo álamo abaixo
e infinitos atalhos entre o canto secreto das dríades

que infinita sedução a do caminho mais curto
que não leva a lado nenhum
não há sítio para chegar
se não partimos de ítaca, o retorno é simplesmente poético
e ainda há tantas estrelas no ar
ainda há tantas velas para içar
um sextante perdido no mar
um albatroz que teima em voar
sem levantar voo do convés
não
o caminho não é curto para quem gosta de andar
para mim só a infinita lonjura do horizonte.
 
Miguel Tiago

Wednesday, 24 May 2023

sem título

a verdade
a verdade é que olhamos uns para os outros
e isto é tudo
um grande centro
de um engano
fun
da
men
tal
desde a origem
ao fim dos apocalipses
a verdade
a verdade é que isto é tudo uma grande
incógnita filha da putice.
 
Miguel Tiago

Sunday, 21 May 2023

um brinde

dois shots de lua cheia
se chego a este balcão para falar da minha vida
tu ouves, pões a bebida
e bebes uma comigo. 

Miguel Tiago

Thursday, 18 May 2023

À CAL DE UM MURO...


À cal de um muro encosto a língua
para cauterizar uma afta.
Depois, por gratidão, na alvura dele
traço uma pomba e, a grandes letras,
escrevo a palavra liberdade.

Armindo Rodrigues

Monday, 15 May 2023

sem título

enquanto os gatos miam
furtam-nos a escuridão da noite
e as estrelas acendem-se-lhes nos olhos
cruzando ligeiras os becos ao fundo
gatos pardos estrelas verdes
por toda a cidade
e nós a desperdiçar lentamente
o veludo negro
enquanto dormimos. 
 
Miguel Tiago

Friday, 12 May 2023

sem título

temos à vista as raízes
e a verticalidade exige que se afundem
na terra nem sempre macia
furando o musgo e rasgando o substrato
de pedra

o vento agita o ligeiro arbusto
da árvore apenas as folhas
mas há sempre quem venha com as máquinas
o madeireiro capaz de arrancar a mais antiga sequóia
quanto mais a mim.
 
Miguel Tiago

Tuesday, 9 May 2023

conversa de café

é um sinal dos tempos
que a todo o tempo se repita
que no passado é que era bom
que no meu tempo não era assim
disse-o meu bisavô
ai que a juventude está perdida
dirão os meus bisnetos
que a seu tempo que está perdida a juventude

só na terra plana há becos sem saída.

o sinal dos tempos
é vermelho. 
 
Miguel Tiago

Saturday, 6 May 2023

sem título

o mar pensa-me as feridas
do casco onde as cracas descansam
e um limo universal pende lento
mas é o mesmo mar que as abre.
 
Miguel Tiago

Wednesday, 3 May 2023

sem título

se eu estivesse num restaurante
sentado ao lado da Cláudia R. Sampaio
quando chegasse o empregado de mesa 
eu diria 
quero o mesmo que aquela senhora. 

Miguel Tiago

Monday, 1 May 2023

de quando em quando

vem o raro sopro de planetas alinhados
daqueles que dizem que vai provocar um fim do mundo
e dás por ti tens dentro do peito dois corações em chamas
e estrelam-se-te pela pele magnésios e cobres de todas as cores
em constelações de fogos

e tu deixas-te ficar
p'ra sempre que é como devia ser
até não teres coração nenhum.
 
Miguel Tiago

Sunday, 30 April 2023

sem título

nós viemos
e já ninguém sabe de onde
tu que sabes
tudo da minha vida
nem sabes se vim de caetobriga
ou de gwadybelas
e o pior
deixo-te uma pista

podes beber um café fora o fim do mundo
(já ninguém joga no ajax)
e há sempre
entre maio e setembro
caracóis.

diz quando chegares à esplanada
não queremos marmelada branca, obrigado. 
 
Miguel Tiago

Thursday, 27 April 2023

sem título

não saberemos do sabor das nêsperas
enquanto não formos de novo crianças
e descalços treparmos a rugueza dos troncos
no fim da tarde
no início do verão.
 
Miguel Tiago

Monday, 24 April 2023

sem título

eu
nem uma légua submarina
mas vinte mil monstros.
 
Miguel Tiago

Friday, 21 April 2023

sem título

 o mestre
não pode continuar
mestre.
 
Miguel Tiago

Tuesday, 18 April 2023

NUNCA FUI RICO...


Nunca fui rico, nem tive
pena de nunca ser rico.
O que tenho o adquiri
pela tarefa cumprida.
Isto o aceitei por destino.
Este é o meu código estrito.

Armindo Rodrigues

Saturday, 15 April 2023

kuzushi

a demolição do equilíbrio
uma implosão
de vários eus.
 
Miguel Tiago

Wednesday, 12 April 2023

vinte vinte


os dias estão a chegar em vagões cheios de gente esquálida

por vezes, na estação, duvido da data


Miguel Tiago

 

 

Sunday, 9 April 2023

sem título

lavra docemente uma cova no meu peito
deita-te dentro em aconchego e lá
morre tranquilamente por favor. 

Miguel Tiago

Thursday, 6 April 2023

versos do tempo das lâmpadas incandescentes


é de casa da Rita, pode chamá-la, por favor?

fazia calor e ainda era por causa do buraco do ozono, esfolávamo-nos nos joelhos até ver a nossa própria carne e não conheço ninguém que tenha morrido de sepsis na adolescência. 
vencíamos por amor a enquistante vergonha de ter de ligar para um centro de pagers e dizer amo-te muito.

a conta da luz era mais baixa apesar de não haver LED nem electrodomésticos classe A porque a luz nascia das entranhas dos nossos rios e agora os rios não são nossos.

e na escola não precisávamos ainda dizer se éramos ricos ou pobres, não havia ensino vocacional que é como quem diz à medida do capital, nem havia ensino para prosseguir estudos que é como quem diz filho de quem pode.

era tudo mais à filme mas na vida real.

no tempo das lâmpadas incandescentes as moscas ainda morriam electrocutadas nos restaurantes e todos podiam entrar sem máscaras até num hospital.

nós tínhamos bolas e jogávamos com elas na rua enquanto vivíamos, ainda, nas  cidades que éramos, mas dentro delas. 
as nossas avós não recebiam cartas de despejo com o selo branco da troika, e nós recebíamos, no natal, uma prenda da empresa em vez de um assalto ao décimo terceiro mês. 
e no verão, ah, no verão, os filhos dos trabalhadores também iam conhecer o país em vez de fazer um estágio não pago para ter... currículo... não era preciso ter experiência antes do primeiro trabalho porque talvez nesse tempo as contradições não fossem ainda tão gritantes. talvez porque se gritasse ainda bem alto de cravo florido no punho cerrado. 

nós somos a primeira geração de filhos e filhas cuja vida será mais dura que a de suas mães e pais.
felizmente não é esse o sentido da nossa história e, por isso, não é preciso ter saudades de lâmpadas incandescentes.

Miguel Tiago

Monday, 3 April 2023

sem título

eu
se fosse poeta 
o que mais gostava era de morrer
nunca um poeta é tão lido como no dia 
de sua morte. 

Miguel Tiago

Saturday, 1 April 2023

sem título

nunca só um momento
tão breve tempo
de rio
encheria um mar
não fora estes olhos
terem visto tamanha precipitação. 

Miguel Tiago

Thursday, 30 March 2023

porque voas

as folhas do outono não estalam sob ti
e a maré só tímida vem beijar-te a pele no fim do verão
ao longe, bem ao longe, semicerro os olhos e lembro-me do teu caminhar de costas nuas rumo à porta.
a gente nunca sabe o que é para sempre. 

Miguel Tiago

Monday, 27 March 2023

sem fim

de quanto em quanto vento
vem o sal do teu sul
na minha língua o teu mediterrâneo 
e o teu planalto de oliveira ainda ancestral 
por quantos suões espero 
até ao mergulho cutâneo 
até ao astro final. 

Miguel Tiago

Friday, 24 March 2023

sem título

 
deixei-te na praia um poema de dez homens a remar cortando a rebentação.
 
Miguel Tiago


Tuesday, 21 March 2023

sem título

o meu sangue, orquídea negra, a espalhar-se
de raízes aéreas rompendo a floresta
estendendo apenas as saudades à casca da árvore
de onde brotara
o meu sangue como um fantasma 
habitando o futuro e todo o mundo aplaudindo de pé
a miragem de um oásis
como se fosse um milagre estar vivo


no deserto.
 
Miguel Tiago

Saturday, 18 March 2023

SIMPLIFICAÇÃO


O mundo é cada vez mais complexo,
mas é cada vez mais simples entendê-lo.

Armindo Rodrigues

Wednesday, 15 March 2023

pra cima de poeta

é um reino vazio
um olimpo que ninguém narrou
e nós, cá de baixo, com sorte, deitamos-lhes uns dinheiros no chapéu
o céu sobre Berlim tem anjos
o chão do mundo tem poetas
que ascendem crepitando nas chamas das palavras
e acendem archotes no peito dos mortais.
 
Miguel Tiago

Sunday, 12 March 2023

sem título

sorves o ar que eu ia respirar
as nossas mãos, arrepiando os lençóis, flores a abrir ao contrário uma na outra. 

Miguel Tiago

Thursday, 9 March 2023

sem título

às vezes parece que dou uns passos em volta
da minha vida 
como quem contempla a distância segura
uma sepultura
onde ninguém deixou flores. 

Miguel Tiago

Monday, 6 March 2023

acesa

levo justamente à ponta da língua
a polpa do meu dedo
e inundo-me no sabor do teu dilúvio. 

Miguel Tiago

Friday, 3 March 2023

pequeno adágio

escuta a idade
ouve os silvos e o silêncio 
e tudo o que existia já quando nasceste
escuta a idade
primeiro 
a dos outros
depois a tua. 

Miguel Tiago



Wednesday, 1 March 2023

tempo mau para lirismos

 
já tantas vezes
é quase certo
te disseram
onde não há verdade
não há poesia
por isso nenhuma onda do mar é poesia
acaso não sejam verdadeiros tanto mar
como onda
nenhum amor em verso que não exista
por isso a revolução poética
é a menos romântica
é a que se faz.
 
Miguel Tiago

Monday, 27 February 2023

sem título

quero passar o próximo fim do mundo  no jardim
com as artérias de um a pulsar no corpo do outro
por dentro
e acordar no dia seguinte e não ser de um sonho.
 
Miguel Tiago

Friday, 24 February 2023

uma rosa

esperei a queda de água de mil clepsidras
pelo teu cheiro
mantive-me à porta entreaberta dos planetas
sem saber das luas cheias
ou das florestas impossíveis
que do horizonte lançavam o azimute do futuro
para que os desnorteados seguissem seu rumo
esperei meia-vida do isótopo mais estável
pela cratera no meio do peito cheia de flores
e pelas pequenas galáxias espalhadas
um pouco por todos os lençóis
até que essa enchente derramasse sobre todas as peles
o toque de uma mão que não larga
que não desiste
que atravessa o vazio inteiro
do que já não nos separa.
 
Miguel Tiago

Tuesday, 21 February 2023

a escola

toda a vida andei numa escola
sem aulas práticas nem valiam a pena as teóricas
e os amigos
ah! os amigos que são de todas as idades
e que ensinam e aprendem como os melhores professores 
para eles inventámos um nome 
camarada
nome de quem partilha a arma e a munição
o sangue e o coração
a boca aberta num grito ou fechada se for o caso 
de ser o silêncio a salvação
pode dar-se a situação
se fores preso, camarada
que isto de democracia é bonito
mas nunca é certo nas mãos da burguesia
podem estalar no ar foguetes 
e celebrar-se até em galas e sessões solenes
a pompa da circunstância do momento 
que isso, aprendi, não faz da miséria abundância
senão em novela venezuelana
em que o sonho de silicone 
surge no sono dos que vêem televisão 
toda a vida fiz essa licenciatura 
em direitos humanos de verdade sem prémios à mistura 
nem nobeis nem sakharovs 
que é como quem diz areia pós olhos 
e os camaradas sempre atentos 
as camaradas sempre em guarda
na linha da frente de rosto levantado 
ameaçados e com medo de perder a vida
sabendo que se não forem camaradas
a já perderam
fazem a escola sem recreio 
sem receio 
opção revolucionária
de fazer sobre os escombros do que aprenderam 
aquilo com que sonharam
não, não é por dentro que se muda 
caso contrário, estamos fora.
 
Miguel Tiago

Saturday, 18 February 2023

DESTA LAMA...


Desta lama de folhas amassadas,
que o varredor com a vassoira varre,
espreita a promessa já de novas folhas.

Armindo Rodrigues

Wednesday, 15 February 2023

sem título

vim aqui,
a este poema,
dizer-te que foi o maior privilégio
rodar a chave na porta da tua casa
e que cada cerveja contigo
era a última coca - cola do deserto.
 
Miguel Tiago

Sunday, 12 February 2023

o rapaz e o lobo

sempre me avisaram:
quando fosse a sério ninguém acreditaria.

Miguel Tiago

Thursday, 9 February 2023

sem título

disseram-me um dia que se alguma coisa levamos deste mundo
não me lembro mas era importante
na verdade, resta-nos a rua estreita
o amplo oceano sob o ar
as palavras dos mestres a soprar as velas
que nos movem vogando as cristas
do planeta que nos calhou na sorte
e os poemas dos outros
que encerram sempre o começo das estrelas
e o fim do mundo.
 
Miguel Tiago

Monday, 6 February 2023

J.

nesse cavalo flamejante
todas as planícies do mundo
num segundo
que não acabasse nunca.

Miguel Tiago

Friday, 3 February 2023

sem título

passou hoje um cometa
que afinal era um rio
ia por aí afora incandescente
como não veio na tv
não existiu
as suas labaredas queimaram todos os animais
as suas temperaturas explodiram todos os termómetros
as suas lágrimas emocionaram os crocodilos ou jacarés ou lá o que é
onças pintadas de todo o mundo uniram-se
e uns milhões de patacos apagaram  porra nenhuma
enquanto os cânticos mais antigos de trabalhar a terra lavaram a fuligem do fogo e o verdete da prata
dizendo ao mundo que até à árvore mais antiga
o rio domina.

Miguel Tiago

Wednesday, 1 February 2023

sem título

 se o caminho certo para chegar a algum lugar
implica andar com os pés assentes na terra
andar com a cabeça nas nuvens não é impeditivo
aliás
de quanto mais alto 
mais longe se avista.
 
Miguel Tiago

Monday, 30 January 2023

o quarto estado

 
era preciso que chegasse alguém
arrombasse as portas
acendesse a luz
ou na escuridão riscasse um fósforo à moda antiga
alguém que viesse de chapéu ou boina ou fuzil
alguém que trouxesse vestidos os séculos num lenço ao pescoço
a aspereza dos condenados da terra nas mãos
e o sorriso das crianças ainda nos olhos
alguém que viesse a cantar em torno de uma fogueira
era preciso que chegasse alguém
que tivesse ardido numa pira
que tivesse sido executado amarrado ou de punho levantado
que fosse uma mulher de filho ao peito
ou de mão à ilharga
alguém que já tivesse pintado um quadro
ou que tivesse sido caçado como um escravo
por um cão no meio do algodão
alguém que já tivesse mesmo mesmo respirado
ar parado
era preciso que chegasse alguém
alguém que viesse na linha da frente de peito cheio
ou alguém que viesse atrás amedrontado,
mas que viesse.
era preciso que chegasse alguém
que derrubasse mentiras com os punhos
e construísse verdades com o olhar
que viesse na máquina do tempo
movida a energia nuclear ou a carvão.
era preciso que chegasse a voar
nas asas da rebelião.

era preciso que chegasse alguém
desses que todos os dias chegam
e desde sempre cá estão.
 
Miguel Tiago

Friday, 27 January 2023

sem título

o principal problema da verdade
é ser intransponível e sermos-lhe inescapáveis
é vir como um cometa daqueles que não são profecia
abater-se sobre o frágil corpo dos homens.
é assim uma música que nunca se esquece
da qual não sabemos se somos ouvintes ou acordes.

Miguel Tiago

Tuesday, 24 January 2023

poerotismo

 
entrar em ti como uma inundação
e ouvir o mais belo som do mundo
aquele de prender-se-te uma nuvem na garganta.
 
Miguel Tiago

Saturday, 21 January 2023

sem título

não acredito em karma
mas lá que é fodido, é.
 
Miguel Tiago

Wednesday, 18 January 2023

NENHUM PRÉMIO, POR MAIOR...


Nenhum prémio, por maior,
vale as dores da liberdade.
Siga o seu próprio pendor
quem de segui-lo se agrade.
Ninguém chore um bem perdido.
Há muitos bens por achar.
Sonhos ocos de sentido
porque havemos de os sonhar?
A liberdade não é
de se dar, mas de tomar-se.
Liberdade que se dê
é apenas um disfarce.

Armindo Rodrigues

Sunday, 15 January 2023

dar e receber

 
tinhas na ponta da língua as minhas galáxias
e depois beijaste-me.
 
Miguel Tiago

Thursday, 12 January 2023

sem título

não rodopiaste como nos filmes, mas houve alguma câmara lenta
os teus olhos semicerrados anunciavam o suor da noite se o abraço fosse acolhido
contaste-me a tua vida num jantar com vista para o tejo já anoitecido sob a sombra do adamastor
esperei na travessa vezes sem conta como quem espera as pétalas a cair no jardim imperial de tóquio
um buraco no peito uma alma cheia um beijo sempre nos lábios 
"o galo já não canta mais no canta galo..."
soava de manhã numa voz doce
e o café passado enchia as ruas todas da tua casa
escrevi-te uma carta mesmo à mão 
que seguiu pelo correio e não vi a tua cara quando a leste
mas fui feliz quando soube que chegara ao alto do bairro 
não andámos de bicicleta mas fiz uma viagem pelos andes 
e vi cholitas e vi o mapa da felicidade em manchinhas desenhadas no teu rosto
e vi o alto do atlas
e o açaí nas mãos dos putos trepando nas árvores
o meu coração nunca exercitou tanto 
não importa a trip, não importa a festa 
não importa o destino, mas a viagem
fui ao zêzere e voltei pelo rio abaixo numa laranja
esperei vezes sem conta na travessa
sentei nos canários em expectativa enquanto debulhava amendoins sagres e cigarros
assaltei fortificações que tinha cá dentro
e entrei nelas de mãos dadas
conheci-te e troquei um autoclismo em tua casa, despedi-me de ti e troquei um na nossa.
estranha estória que parece um retorno mas não é.
nem um minuto a menos, disso a certeza.
 
Miguel Tiago

Monday, 9 January 2023

sem título

vem
anda acordar os vendavais
anda dar as mãos 
tirar os pés do chão num suspiro de amor
anda sentir a pressão sanguínea ou deixar flamejar os olhos de raiva
anda dizer a caronte que se foda
e atirar para longe o óbulo 
e dizer vai buscar
já se faz tarde para epicurismo
o sol já se pôs 
igualmente tarde para estoicismo
a lua já se apagou
ainda mais tarde para hedonismo
a era do Homem já começou 
agora é acender estrelas por esse mundo afora
e pedir a alguém que escreva um hino daqueles de levantar gerações após gerações 
de chamas olímpicas 

anda girar o planeta no centro de um furacão 
e enlouquecer os marinheiros de todos os mares e oceanos
só com o olhar
tatuar-lhes âncoras e faróis mesmo no coração 
ainda é só o começo
gritam perdidos no escuro
é, de facto, ainda só o começo.
 
Miguel Tiago

Friday, 6 January 2023

LIVRE


Livre de todas as servidões me sinto,
livre de todas as servidões me quero,
conquanto acusado
de servir constantemente a liberdade.
E servidor constante da liberdade o sou,
o que é, a par, a libertação possível,
o que é, a par, a libertação total.

Armindo Rodrigues

Tuesday, 3 January 2023

sem título

 
aquelas tartarugas acabadas de sair do ovo e preparadas para a maratona das suas vidas. sabem onde está o mar e vão frenéticas em sua busca. das centenas de ovos e tartarugas, está cumprido o papel da natureza e o labor da mãe acaso alguma sobreviva ao ponto de chegar a cruzar os oceanos.

milhões de espermatozóides em meio inóspito, só um fecunda o óvulo e já é uma sorte.

milhões de humanos a procurar o oceano, o óvulo da alegria e da sua permanência. se um lá chegar, torcemos por ele. se foste tu, não desperdices.
 
Miguel Tiago

Sunday, 1 January 2023

sem título


a flecha não tem culpa de acertar no alvo errado.  
 
Miguel Tiago