eu sou o abismo.
Miguel Tiago
Bebo, com um naco de pão com chouriço
e um grupo de amigos,
um copo de vinho.
No dia nevoento refaz-se o bom tempo.
Bebemos, felizes, à saúde de todos,
à paz entre todos,
à abundância entre todos.
E a seguir cantamos em louvor da alegria.
Armindo Rodrigues
já basta que nos apartemos
- amantes na estação, um na plataforma, outro subindo a carruagem
- lentamente - como se desentrelaçam as mãos até à ponta dos dedos
- do calor em morte
se deixares secar o rio que te corre por dentro
é mais fácil que todos o atravessem
mas depois quem mergulharia ou
juntava caudal à torrente?
Miguel Tiago
onde estavas quando perguntei por ti
deram-me sempre a mesma resposta
não vi e um número de um hospital
obrigado
está tudo bem.
Miguel Tiago
minerar da sempiterna escuridão
o mais pequeno pedaço de caos
e ser um diamante.
lá no berço mais antigo
onde se aprende o norte do universo
pelo cheiro das galáxias
caminhamos a vereda íngreme da verdade
o sol põe-se o sol nasce
e nós juntamos o que pensamos hoje em cima
dos milhões que pensaram antes
e a nossa matéria
toma de si própria a consciência possível
no meio da tempestade
e do vento indecifrável das poeiras estelares
a maternidade de nós todos é uma estrela
e nós somos, até ver, na versão menos romântica estrelas mortas
a estrela polar morre no equador
porque escrevo no hemisfério norte
mas é no equador que nasce o cruzeiro
e a terra
acho que a terra também nasceu lá no sul
lá onde a vida não é um sucedâneo espanhol de chocolate
é cacau
onde a coca não é ina, é folha,
o nosso norte é o sul.
mas lá pelo sul também já espalharam norte.
Miguel Tiago
dois shots de lua cheia
se chego a este balcão para falar da minha vida
tu ouves, pões a bebida
e bebes uma comigo.
Miguel Tiago
por vezes, na estação, duvido da data
Miguel Tiago
Miguel Tiago
O mundo é cada vez mais complexo,
mas é cada vez mais simples entendê-lo.
Armindo Rodrigues
Desta lama de folhas amassadas,
que o varredor com a vassoira varre,
espreita a promessa já de novas folhas.
Armindo Rodrigues
nesse cavalo flamejante
todas as planícies do mundo
num segundo
que não acabasse nunca.
Miguel Tiago
passou hoje um cometa
que afinal era um rio
ia por aí afora incandescente
como não veio na tv
não existiu
as suas labaredas queimaram todos os animais
as suas temperaturas explodiram todos os termómetros
as suas lágrimas emocionaram os crocodilos ou jacarés ou lá o que é
onças pintadas de todo o mundo uniram-se
e uns milhões de patacos apagaram porra nenhuma
enquanto os cânticos mais antigos de trabalhar a terra lavaram a fuligem do fogo e o verdete da prata
dizendo ao mundo que até à árvore mais antiga
o rio domina.
Miguel Tiago
o principal problema da verdade
é ser intransponível e sermos-lhe inescapáveis
é vir como um cometa daqueles que não são profecia
abater-se sobre o frágil corpo dos homens.
é assim uma música que nunca se esquece
da qual não sabemos se somos ouvintes ou acordes.
Miguel Tiago
Nenhum prémio, por maior,
vale as dores da liberdade.
Siga o seu próprio pendor
quem de segui-lo se agrade.
Ninguém chore um bem perdido.
Há muitos bens por achar.
Sonhos ocos de sentido
porque havemos de os sonhar?
A liberdade não é
de se dar, mas de tomar-se.
Liberdade que se dê
é apenas um disfarce.
Armindo Rodrigues