Monday 15 November 2021

A um Papa

Poucos dias antes que morresses, a morte
tinha posto os olhos num teu coetâneo:
aos vinte anos, eras estudante,
ele servente,
tu, nobre, rico,
ele, um rapazote plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre vós
a velha Roma que se tornava assim nova.

Vi os seus despojos, pobre Zuccheto.
Girava de noite, bêbedo, em volta dos Mercados,
e o eléctrico de São Paulo atropelou-o
e arrastou uma parte pelas linhas entre os plátanos:
algum tempo ali ficou, sob as rodas:
alguma gente se reuniu em torno a olhá-lo
em silêncio: era tarde, havia poucos passantes.
Um dos homens que existem porque tu existes,
um velho polícia, desleixado como um «guapo»,
gritava a quem se encostava muito: «Larguem-lhe a braguilha!»
Depois veio o automóvel dum hospital a carregá-lo:
a gente dispersou, ficou qualquer frangalho aqui e ali,
e a dona de um bar nocturno,
que o conhecia, disse a um recém-chegado
que Zucchetto acabara sob um eléctrico, finara-se.
Poucos dias depois acabavas tu.

Zuccheto era um
da tua grande grei romana e humana,
um pobre bebedola, sem família e sem leito,
que girava de noite, vivendo quem sabe como.
Tu não sabias nada: como não sabias nada
de outros tantos e tantos cristos como ele.
Talvez seja feroz ao perguntar-te por que razão
a gente como Zucchetto era indigna do teu amor.
Há lugares infames, onde mães e filhos
vivem numa poeira antiga, em lama de outra época.
Precisamente não longe donde viveste,
à vista da bela cúpula de S. Pedro,
há um destes lugares, o Gelsomino...
Um monte talhado ao meio por uma mina e, em baixo,
entre pedras e uma fila de novos prédios,
um grupo de míseras construções, não casas mas pocilgas.
Bastava apenas um gesto teu, uma palavra tua,
para que aqueles teus filhos tivessem uma casa:
tu não fizeste um gesto, não disseste uma palavra.
Não te pedíamos que perdoasses a Marx! Uma onda
imensa que se refracta por milénios de vida
te separava dele, da sua religião:
mas na tua religião não se fala de piedade?
Milhares de homens sob o teu pontificado,
perante os teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.
Tu o sabias: pecar não significa fazer mal:
não fazer bem, isso significa pecar.
Quanto bem podias fazer! E não o fizeste:
não houve um pecador maior do que tu.

Pier Paolo Pasolini