Wednesday 18 November 2020

EM PARIS, A 28 DE MAIO DE 1958

Por sorte que vi, por sorte que vi,
por sorte que vi esse dia.
Esse dia, por sorte que o vi em Paris.
Paris correu como um rio.
O verdadeiro Paris,
o grande Paris,
todo azul e vermelho,
e o Reno e o Ródano e o Garona e o Sena correram;
Paris correu como as águas em cascata.
Paris desfilou em 1958
a 28 de Maio.
Por sorte que vi, por sorte que vi
esse dia, por sorte que o vi em Paris.
O homem transpôs as portas.
De um momento para o outro o homem encheu a praça.
Como gaiola aberta para o pássaro sair,
os muros libertaram o homem.
De repente um homem confundiu-se
com quinhentos mil homens.
Quinhentos mil homens
confundiram-se
com um único homem:
Ivry, Saint-Denis, Belleville,
todos os arrabaldes de Paris
chegaram
de bicicleta.
As pedras animaram-se para se transformarem em homens.
Ah este coração! Ah este coração! Ah este coração!
Coração doente, maldito coração!
Este coração que impede que eu me misture com eles:
à cabeça, os deputados, cingidos com as
suas faixas,
à minha direita, Pierre, o torneiro de olhos de água;
à minha esquerda, o professor da Sorbonne,
de barba branca;
à minha direita, um
baixo e moreno,
explosivo;
os seios da rapariga de azul ao meu lado
são bombas,
e os saltos dos sapatos, agulhas.
Ah este coração! Ah este coração!
que me impede de integrar a corrente,
de uma praça para outra.

Escrevo tudo isto
a 29 de Maio de 1958.
Sei que há traidores entre nós,
conheço alguns.
Quem sabe? É talvez um pouco
por nossa causa
que as águas, em sucessivas vagas,
de azul e vermelho,
não conseguem destroçar
o navio negro do corsário.

Nazim Hikmet