Monday 12 October 2020

Da Morte

Entrem lá, meus amigos, sentem-se,
sejam benvindos, trazem-me alegria.
Já sei, entraram pela janela da cela enquanto eu dormia
não deixaram cair nem a garrafa de gargalo fino
nem a caixa vermelha de medicamentos.
Aí estão todos de mãos dadas à minha cabeceira
com uma palidez de estrela nos rostos.

Como é estranho
Pensava que estavam mortos
e como não creio em Deus nem no além
lamentava não lhes ter ainda
oferecido uma pitada de tabaco.

Como é estranho
Pensava que estavam mortos
entraram pela janela da cela
Venham pois, meus amigos, sentem-se
sejam benvindos, trazem-me alegria.

Hachim, filho de Osman,
porque me olhas com ar de caso?
Hachim, filho de Osman,
como é estranho
não tinhas morrido, meu irmão,
em Istambul, no porto,
durante um carregamento de carvão para um barco estrangeiro?
Caíste com o balde no fundo do porão
foi o cabrestante do cargueiro a içar-te
e antes de ires repousar para sempre
o teu sangue, muito vermelho, lavou a tua cabeça negra.
Quem sabe aquilo que sofreste.

Não fiquem de pé, sentem-se,
pensava que estavam mortos
entraram pela janela da cela
com uma palidez de estrela nos rostos
Sejam benvindos, trazem-me alegria.

Yakup, da aldeia de Kayalar,
olá, velhote,
não estavas morto, também tu?
Não tinhas ido para o cemitério sem árvores
deixando aos filhos a malária e a fome?
Fazia um calor horrível nesse dia
Então, não estavas morto?

E tu Ahmed Djemil, o Escritor?
Vi com os meus próprios olhos
o teu caixão descer à terra
creio mesmo estar lembrado
que o teu caixão era pequeno demais para o teu tamanho.
Deixa, Ahmed Djemil,
vejo que ainda conservas o velho hábito,
uma garrafa de medicamento, não de raki,
bebias dessa maneira
para poderes fazer cinquenta piastras por dia
e para poderes esquecer o mundo na tua solidão.

Pensava que estavam mortos, meus amigos,
afinal estão à minha cabeceira de mãos dadas
Sentem-se, meus amigos, sentem-se,
sejam benvindos, trazem-me alegria.

A morte é justa, diz um poeta persa,
ceifa o pobre e o xá com igual majestade.
Hachim, porque te espantas?
nunca ouviste falar de um xá
morto no porão de um navio com um balde na mão?
A morte é justa, diz um poeta persa.

Yakup,
como ficas belo quando ris, querido velho,
nunca te vi rir assim
quando estavas vivo...
Mas espera que eu acabe
A morte é justa, diz um poeta persa...

Deixa essa garrafa, Ahmed Djemil,
não vale a pena zangares-te, eu compreendo-te
Para que a morte seja justa
é preciso que a vida seja justa.

O poeta persa...

Porquê, meus amigos, porque me deixam assim sozinho?
Onde vão vocês?

Nazim Hikmet