do canto da escuridão, uma criança surge correndo, com uma
certa pressa como se fugisse de alguém. a cor do seu vestido quase não
se distingue do fundo negro, mas vemos do seu rosto um olhar de quem
corre fugindo mas sem medo. não a apanharão, pensará ela enquanto corre,
percorrendo o vazio escuro de um palco. atravessa-o e mesmo junto a nós
vem, algo apressada, plantar uma pequena flor vermelha num montinho de
terra feito à pressa com a que estava à mão. erguida do chão a pequena
flor, a criança, olha em redor, passa o pé de roda da terra para a
calcar e dar segurança às ainda frágeis raízes, e deixamos rapidamente
de a ver.
dois homens surgem no escuro, com uma luz forte a
iluminar-lhes o caminho. espingarda às costas, olham a flor,
entreolham-se pouco tempo porque, como para autómatos, a existência do
outro é um facto estranho, ao qual toda a importância dada é demasiada.
já muito perto da flor, apontam-lhe as espingardas. um deles, ante a
resistência inusitada da flor à voz de prisão e de joelhos no chão, mãos
na cabeça, arranca-a do chão sem piedade, tira-lhe duas pétalas para
análise posterior em laboratório e deixa abandonado o cadáver que ora
jaz pelo monte de terra desfeito.
tudo é escuridão. os homens diluem-se nela. uma fresta de
luz rente ao chão vem do nascente e ouvem-se os passos mais apressados
de uma criança. vem com o mesmo vestido, porém mais apressada, a
respiração mais difícil, os passos mais trementes. nas mãos traz uma
flor e desajeitada mas cuidadosa, volta ao mesmo local, arranja de novo a
terra, ergue de novo a flor, olha em redor, calca a terra, some no
escuro.
dois homens surgem destacando-se do escuro. como é possível
que a flor tenha de novo surgido? talvez tenha deitado sementes, talvez
sejam necessárias medidas mais duras, uma pulverização do terreno com
herbicidas, uma praga de gafanhotos, uma vigilância constante, quem sabe
mesmo videovigilância. tudo ideias que podem e devem discutir e tudo
ideias que tentaram. a flor morreu e tornou a surgir pelas mãos de uma
criança que, sob as câmaras de vigiância ou o olhar mais atento das
espingardas, sabia sempre como ali a levantar do chão que parecia
estéril.
estéril não era. e a flor tornava, por vezes apenas por
alguns minutos, a erguer-se na escuridão procurando o sol de que vivia.
ou chamando o sol que a fazia viver.
certo dia, os homens construíram toda uma igreja, com
sacerdotes e templos. era muito importante que ninguém se aproximasse da
flor que teimava em nascer. era muito importante não a querer ver, não a
querer cheirar. anos a fio e gerações atrás de gerações viveram
aterrorizadas pela simples ideia de que fosse possível cheirar uma flor.
e no entanto, era uma criança quem teimava em resistir às ordens.
adiante, no fundo do escuro, uma projecção mostra como a
comunicação social se empenha em dizer que a flor é má. que aliás, todas
as flores são más, não só as vermelhas. todas, de todas as cores, é
preciso acabar com elas. e se porventura no teu quintal a chuva trouxer
uma qualquer flor, nem que seja daninha e espontânea, é teu dever
arrancá-la do chão sem piedade e incinerá-la até que não reste qualquer
cor.
a polícia secreta foi ao local, trocou impressões, recolheu
provas. a igreja mandou muitos homens estudar o fenómeno para saberem
como escrever livros com as mentiras certas. a alta hierarquia da igreja
sugeriu finalmente que se fizesse de betão o chão onde as flores
teimavam em brotar. que nenhuma flor romperia o betão sólido. assim se
fez.
durante anos o betão não fendeu.
a chuva, o oxigénio e o sol, todavia, que alimentam e
fortalecem flores, venceram a batalha e o betão, anos depois, viu
abrir-se-lhe uma pequeníssima fenda, imperceptível para as autoridades
do estado e da igreja. o suficiente para que a criança, logo surgisse de
novo com uma flor na mão e enchesse com um punhado de terra a fenda
minúscula. a flor nasceu no meio do betão. a criança, contudo, não
escapou e foi capturada poucos minutos depois.
com as espingardas apontadas, e os dedos acusatórios da
igreja sancionando a morte como forma única de expiação, a criança
ajoelhou, ergueu os olhos, com serenidade e confiança. nenhuma arma
disparou, ninguém mais exigiu o que fosse. porque a criança era afinal
todos nós e o seu rosto um espelho onde se reflectiam todos os rostos da
plateia.
a flor, ao canto, permaneceu.
Miguel Tiago
Miguel Tiago