Tuesday 21 February 2017

INVENTÁRIO DE DOMINGO

No domingo pastoso e lento
há um relógio realejo
redondo como um bocejo
que rói o tempo e o pensamento.

Há o bairro puído e humilhado,
há sempre o disco usado na vitrola
e há uma lágrima que rola
entre o presente e o passado.

E há a chuva, que prevê o calendário,
e há o tédio, e há a monotonia
banal na sua geometria
que vai da gaiola ao aquário.

E há o amor, um amor assim-assim,
burguês, dominical e burocrático
que seria alegre se não fosse dramático,
que seria tudo se não fosse um folhetim.

E há pessoas ancoradas nos salões
horas e horas com olhar fixo e duro
para que os olhos das crianças do futuro
sejam rectangulares como televisões.

Sidónio Muralha
(«Os Olhos das Crianças» - 1963)