Thursday 6 March 2014

À noite


À noite, tudo se agarrava às pernas e, na escuridão, um velho deus nostálgico e humano movia-se numa esperança vã, aliviado por contemplar os objectos.
Nenhum caminho terminara: era a memória que, cantando, alguma coisa queria ou precisava. No primeiro instante o silêncio era hóspede, depois continuaria a lembrar quanto de nada se sabia, o que a dor pequena ia despindo, comentário irreparável do espelho escuro, arruinado.
Nem sono, nem sonho: tudo branco e separado.
Pelas sete horas, como doença, a casa delirava respirando deslizes, vertigens, agitações. Até ao meio dia estabelecia-se crescentes transparências, recompunham-se sem exageros o tempo e a distância.


Joaquim Pessoa
in FLY