Friday, 30 May 2025

Sou

 
Sou uma casa e uma árvore.
O meu telhado tem milhares de folhas verdes
e as minhas janelas escancaradas
são os olhos dos pássaros.
in "Os dias não andam satisfeitos"

Tuesday, 27 May 2025

Testamento

 
Deixo aos sindicatos
do cobre, do carvão e do salitre
minha casa junto ao mar de Isla Negra.
Quero que ali repousem os maltratados filhos
de minha pátria, saqueada por achas e traidores,
desbaratada em seu sagrado sangue,
consumida em vulcânicos farrapos.
Quero que ao limpo amor que recorrera
meu domínio, descansem os cansados,
sentem-se a minha mesa os obscuros,
durmam sobre minha cama os feridos.
Irmão, esta é minha casa, entra no mundo
de flor marinha e pedra constelada
que levantei lutando em minha pobreza.
Aqui nasceu o som em minha janela
como em um crescente caracol
e logo estabeleceu suas latitudes
em minha desordenada geologia.
Tu vens de abrasados corredores,
de túneis mordidos pelo ódio,
pelo salto sulfúrico do vento:
aqui tens a paz que te destino,
água e espaço de minha oceania.
Pablo Neruda

Saturday, 24 May 2025

Ao meu maior amigo

 
Quando eu morrer, eu sei, tu escreverás
Triste soneto à morte prematura;
Dirás que a vida cansa em amargura
E, pálido e frio, tu me cantarás.
Nas quadras, reflectido se lerá
De como, vã e breve, a vida expira
E como em terra funda, dura e fria,
A vida, má ou boa, acabará.
A seguir, nos tercetos, tu dirás
Que a morte é mistério, tudo fugaz,
Verdadeira, talvez, a vida além.
Por fim porás a data, assinarás.
E, relido o soneto, ficarás
Contente por tê-lo escrito bem.
Alexander Search

Wednesday, 21 May 2025

Soneto menor à chegada do verão

 
Eis como o verão
Chega de súbito,
Com seus potros fulvos,
Seus dentes miúdos,
Seus múltiplos, longos
Corredores de cal,
As paredes nuas,
A luz de metal,
Seu dardo mais puro
Cravado na terra,
Cobras que despertam
No silêncio duro
Eis como o verão
Entra no poema.

Eugénio de Andrade

Sunday, 18 May 2025

Soneto matinal a una colegiala ingrávida

 
Al pasar me saluda y tras el viento
que da al aliento de su voz temprana
en la cuadrada luz de una ventana
se empaña, no el cristal, sino el aliento
Es tempranera como una campana.
Cabe en lo inverosímil, como un cuento
y cuando corta el hilo del momento
vierte su sangre blanca la mañana.
Si se viste de azul y va a la escuela,
no se distingue si camina o vuela
porque es como la brisa, tan liviana
que en la mañana azul no se precisa
cuál de las tres que pasan es la brisa,
cuál es la niña y cuál es la mañana.
Gabriel García Márquez

Thursday, 15 May 2025

*

 
Coro A
Escrevam aí: a terra é nossa.

Latifundiário
O que eles dizem não se escreve.

(Uma jovem mulher empoleirada numa escada, 
pintou uma estrela na parede branca e velha, 
e está a escrever "Comparativa Agrícola/ da/ 
                                         Estrela Ver [...]") 

Olhem aquela a ver se escreve...
Tem logo um erro de ortografia.

O segundo trabalhador
Não sabes ler. Essa escrita nunca vocês a
apagarão. Aquele erro é a violência sobre a
jovem mulher, mas é a língua da alegria que
ela escreve.

Coro A
Fica escrito: reforma agrária.

Manuel Gusmão,
Os Dias Levantados

Monday, 12 May 2025

*

 
A fome dos poetas é redonda
e funda, como um lago. Não é de agora
esta fome. é de antes do primeiro poeta, e de antes
do antes. É fome do dia seguinte, fome molhada
de futuro.
O poeta nunca abre os braços ao dia de hoje.
Quando o poema nasce, cumprimenta a vida e diz: Olá,
amanhã! Olá coisas que hão-de vir!, para que a poesia
seja o mais além, a irrepetível raiz do mais amor
da escrita.
A fome dos poetas só a tem
a vida, nas coisas sensíveis que permanecem ardendo,
como o vento por dentro das aves e que, assim,
loucas, lúcidas, vivem na cabeça inesperada
das crianças.
Por vezes o poeta devora a sua própria
fome com a boca doente, enlouquecida, capaz de
mastigar o brilho amável das estrelas cuja luz já morreu
mas figurando ainda no mapa do céu como a dor branca
dos poemas.
A fome dos poetas é uma pátria,
um pensamento, uma alegria sem idade, um livro
onde trabalham versos floridos que darão os frutos
do silêncio, esse pão inteligente com que a escrita
alimenta o leitor.

Joaquim Pessoa

Friday, 9 May 2025

^_^

 
não é dia de natal nem do teu aniversário
ou do meu, e nem sequer é dia da mulher
é um dia qualquer como outros que já foram
uns espantosos e alguns nem por isso
fala-se pouco dos dias assim assim
e é deles o tijolo mais bonito e imperfeito
das construções a dois
como se fala pouco de amor fora das datas
esse amor oficial de calendário
o tal que nunca nos interessou
porque dissemos sempre e sempre e outra vez
ou amor todo ou não me interessa
tenho mais o que fazer
e é talvez isso ou só pode ser isso
que eu sou já velho mas estou outra vez
no elevador estrangeiro onde tirei esta foto
e vejo hoje - daqui a pouco - quando chegares
o que foi - e o agora - e o sempre.

Rodrigo Guedes de Carvalho

Tuesday, 6 May 2025

Viagem através de uma fatia de bolo-rei

 
Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.
Eram quase duas horas da manhã
e eu perguntei-lhe
se queria comer alguma coisa.
Disse que sim. Mas que
estava com muita pressa.
Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe
uma sanduíche de fiambre
um copo de vinho
uma fatia de bolo-rei.
Estava de pé
comia como se fosse a primeira vez
desde a infância.
-Há quantos anos
deixa cá ver
há quantos anos é que eu não comia
bolo-rei?
Este é bom, sabe a erva-doce
e a ovos.
(Caíam-lhe migalhas
aparava-as com a outra mão
em concha)
- Comes outra fatia, camarada?
- Isso não.
Estou atrasado já.
Mas se ma embrulhasses...
Através da janela
do quarto às escuras
fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche
seguir pela Rua dos Lusíadas.
Nenhum de nós sabia
que estava já erguida a pirâmide do silêncio
à espera dele
num breve prazo.
Quando talvez o gosto do bolo-rei
mais forte do que nunca
tivesse ainda na boca.
Mário Castrim
(poema para José Dias Coelho)

Saturday, 3 May 2025

Amigo

 
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!

«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre O'Neill,
in 'No Reino da Dinamarca'

Thursday, 1 May 2025

Meu primeiro de Maio

 
Todos
que marchais pelas ruas
e deteis as máquinas e as fábricas,
todos
desejosos de chegar a nossa festa
com as costas marcadas pelo trabalho,
saí a 1º de Maio,
o primeiro dos dias.
Recebê-lo-emos, camaradas,
com a voz entrecortada de canções.
Primavera,
derretei a neve.
Eu sou operário,
este dia é meu.
Eu sou camponês,
este dia é meu.

Todos,
estendidos nas trincheiras
esperando a morte infinita,
todos
os que num carro blindado
atiram contra seus irmãos,
escutai:
Hoje é 1º de Maio.
Partamos ao encontro
do primeiro dos nossos dias,
enlaçando as mãos proletárias.
Calai vossos morteiros!
Silêncio, metralhadoras!
Eu sou soldado,
este dia é meu.

Todos,
das casas,
das praças,
das ruas,
encolhidos pelo gelo invernal,
todos
torturados de fome,
das estepes,
dos bosques,
dos campos,
saí neste 1º de Maio!
Glória à gente fecunda!
Desabrochai, primavera!
Verde campos, cantai!
Soai sirenes e apitos!
Eu sou de ferro,
este dia é meu.
Eu sou a terra,
este dia é meu!

Maiakovsky