Saturday, 30 November 2024

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

15-1-1928
«Poesias de Álvaro de Campos». Fernando Pessoa

Wednesday, 27 November 2024

Folhas de água

Hei-de escrever em folhas de água
todas as pedras que o mar pariu
e toda a estrela que se afundou
Se houver uma praia, então eu trago-a
ao berço de quem já partiu
que assim se deu, e assim me dou

É por isso que mar nasce em qualquer rosto
que sente a dor de quem não conhece
e sabe as veias que vão do mar ao céu
Às vezes um sorriso é fogo posto
que do teu peito ao meu me aquece
Assim me dóis, assim sou eu

João Monge

Sunday, 24 November 2024

Memória

Tudo que sou, no imaginado
silêncio hostil que me rodeia,
é o epitáfio de um pecado
que foi gravado sobre a areia.
O mar levou toda a lembrança.
Agora sei que me detesto:
da minha vida de criança
guardo o prelúdio dum incesto.
O resto foi o que eu não quis:
perseguição, procura, enlace,
desse retrato feito a giz
pra que não mais eu me encontrasse.
Tu foste a noiva que não veio,
irmã somente prometida!
— O resto foi a quebra desse enleio.
O resto foi amor, na minha vida.

David Mourão-Ferreira

Thursday, 21 November 2024

La casada infiel

Y que yo me la llevé al río
creyendo que era mozuela,
pero tenía marido.
Fue la noche de Santiago
y casi por compromiso.
Se apagaron los faroles
y se encendieron los grillos.
En las últimas esquinas
toqué sus pechos dormidos,
y se me abrieron de pronto
como ramos de jacintos.
El almidón de su enagua
me sonaba en el oído,
como una pieza de seda
rasgada por diez cuchillos.
Sin luz de plata en sus copas
los árboles han crecido,
y un horizonte de perros
ladra muy lejos del río.
Pasadas las zarzamoras,
los juncos y los espinos,
bajo su mata de pelo
hice un hoyo sobre el limo.
Yo me quité la corbata.
Ella se quitó el vestido.
Yo el cinturón con revólver.
Ella sus cuatro corpiños.
Ni nardos ni caracolas
tienen el cutis tan fino,
ni los cristales con luna
relumbran con ese brillo.
Sus muslos se me escapaban
como peces sorprendidos,
la mitad llenos de lumbre,
la mitad llenos de frío.
Aquella noche corrí
el mejor de los caminos,
montado en potra de nácar
sin bridas y sin estribos.
No quiero decir, por hombre,
las cosas que ella me dijo.
La luz del entendimiento
me hace ser muy comedido.
Sucia de besos y arena
yo me la llevé del río.
Con el aire se batían
las espadas de los lirios.
Me porté como quien soy.
Como un gitano legítimo.
Le regalé un costurero
grande de raso pajizo,
y no quise enamorarme
porque teniendo marido
me dijo que era mozuela
cuando la llevaba al río.

Federico Garcia Lorca

Monday, 18 November 2024

As poucas palavras


Foi um dia, e outro dia, e outro ainda.
Só isso: o céu azul, a sombra lisa,
o livro aberto.
E algumas palavras. Poucas,
ditas como por acaso.
Eram contudo palavras de amor.
Não propriamente ditas,
antes adivinhadas. Ou só pressentidas.
Como folhas verdes de passagem.
Um verde, digamos, brilhante,
de laranjeiras.
Foi como se de repente chovesse:
as folhas, quero dizer, as palavras
brilharam. Não que fossem ditas,
mas eram de amor, embora só adivinhadas.
Por isso brilhavam. Como folhas
molhadas.

Eugénio de Andrade

Friday, 15 November 2024

ausência

a mensagem do silêncio é a totalidade.

Miguel Tiago

Tuesday, 12 November 2024

- sem título -

minerar da sempiterna escuridão

o mais pequeno pedaço de caos

e ser um diamante.


Miguel Tiago

Sunday, 10 November 2024

La lámpara marina


I
El Puerto Color de cielo

Cuando tú desembarcas
en Lisboa,
cielo celeste y rosa rosa,
estuco blanco y oro,
pétalos de ladrillo,
las casas,
las puertas,
los techos,
las ventanas,
salpicadas del oro limonero,
del azul ultramar de los navíos.

Cuando tú desembarcas
no conoces,
no sabes que detrás de las ventanas
escuchan,
rondan
carceleros de luto,
retóricos, correctos,
arreando presos a las islas,
condenando al silencio,
pululando
como escuadras de sombras
bajo ventanas verdes,
entre montes azules,
la policía
bajo las otoñales cornucopias
buscando portugueses,
rascando el suelo,
destinando los hombres a la sombra.

II
La Cítara Olvidada

Oh Portugal hermoso
cesta de fruta y flores,
emerges
en la orilla plateada del océano,
en la espuma de Europa,
con la cítara de oro
que te dejó Camoens,
cantando con dulzura,
esparciendo en las bocas del Atlántico
tu tempestuoso olor de vinerías,
de azahares marinos,
tu luminosa luna entrecortada
por nubes y tormentas.

III
Los presidios

Pero,
portugués de la calle,
entre nosotros,
nadie nos escucha,
sabes
dónde
está Álvaro Cunhal?
Reconoces la ausencia
del valiente
Militão?
Muchacha portuguesa,
pasas como bailando
por las calles
rosadas de Lisboa,
pero,
sabes dónde cayó Bento Gonçalves,
el portugués más puro,
el honor de tu mar e de tu arena?
Sabes
que existe
una isla,
la isla de la Sal,
y Tarrafal en ella
vierte sombra?
Sí, lo sabes, muchacha,
muchacho, sí, lo sabes.
En silencio
la palabra
anda con lentitud pero recorre
no sólo el Portugal, sino la tierra.
Sí, sabemos,
en remotos países,
que hace treinta años
una lápida
espesa como tumba o como túnica
de clerical murciélago,
ahoga, Portugal, tu triste trino,
salpica tu dulzura
con gotas de martirio
y mantiene sus cúpulas de sombra.

IV
El Mar Y Los Jazmines

De tu mano pequeña en otra hora
salieron criaturas
desgranadas
en el asombro de la geografia.
Así volvió Camoens
a dejarte una rama de jazmines
que siguió floreciendo.
La inteligencia ardió como una viña
de transparentes uvas
en tu raza.

Guerra Junqueiro entre las olas
dejó caer su trueno
de libertad bravía
que transportó el océano en su canto,
y otros multiplicaron
tu esplendor de rosales y racimos
como si de tu territorio estrecho
salieran grandes manos
derramando semillas
para toda la tierra.

Sin embargo,
el tiempo te ha enterrado.
El polvo clerical
acumulado en Coimbra
cayó en tu rostro
de naranja oceánica
y cubrió el esplendor de tu cintura.

V
La Lámpara Marina

Portugal,
vuelve al mar, a tus navíos,
Portugal, vuelve al hombre, al marinero,
vuelve a la tierra tuya, a tu fragancia,
a tu razón libre en el viento,
de nuevo
a la luz matutina
del clavel y la espuma.
Muéstranos tu tesoro,
tus hombres, tus mujeres.
No escondas más tu rostro
de embarcación valiente
puesta en las avanzadas de Océano.
Portugal, navegante,
descubridor de islas,
inventor de pimientas,
descubre el nuevo hombre,
las islas asombradas,
descubre el archipélago en el tiempo.

La súbita
aparición
del pan
sobre la mesa,
la aurora,
tú, descúbrela,
descubridor de auroras.
Cómo es esto?
Cómo puedes negarte
al ciclo de la luz tú que mostraste
caminos a los ciegos?

Tú, dulce y férreo y viejo,
angosto y ancho padre
del horizonte, cómo
puedes cerrar la puerta
a los nuevos racimos
y al viento con estrellas del Oriente?

Proa de Europa, busca
en la corriente
las olas ancestrales,
la marítima barba
de Camoens.
Rompe
las telaranãs
que cubren tu fragrante arboladura,
y entonces
a nosotros los hijos de tus hijos
aquellos para quienes
descubriste la arena
hasta entonces oscura
de la geografía deslumbrante,
muéstranos que tú puedes
atravesar de nuevo
el nuevo mar oscuro
y descubrir al hombre que ha nacido
en las islas más grandes de la tierra.

Navega, Portugal, la hora
llégó, levanta
tu estatura de proa
y entre las islas y los hombres vuelve
a ser camino.
En esta edad agrega
tu luz, vuelve a ser lámpara:
aprenderás de nuevo a ser estrella.

Pablo Neruda
(para Álvaro Cunhal)

Saturday, 9 November 2024

rente ao chão

não apenas escrevo menos do que os escritores e bebo mais do que os bêbados,
como não é a falta de inspiração que me tolhe. 

é ter, ainda que não toda, alguma noção.

Miguel Tiago 

Wednesday, 6 November 2024

sem título

sob a língua tenho a verdade

e sabe a ti.

Miguel Tiago

Sunday, 3 November 2024

sem título


a chuva já veio lavar o caos da terra estalada
do ar limpar as areias amarelas dos desertos
mas veio tarde para nos limpar da alma a morte extrema
e tornar clara esta obsessão de ver ordem na violência desde que o agressor sejamos nós.

Miguel Tiago

Friday, 1 November 2024

por acaso

 
nada quero além de parar de largar este ferrado
que turva os éteres e as respirações
para que possa silencioso escapar por entre as delicadas cordas de mil harpas,
eu próprio ver o caminho
e aprender a tocar.

Miguel Tiago