enchi o peito com o fumo na mesa do café, quando ainda se podia fumar nos cafés, e olhei para uma outra mesa.
sobre a mesa um cinzeiro vazio, uma bolsa de mulher e um café. ela estava, com os cabelos louros, olhando na direcção da porta como se esperasse alguém.
a minha chávena estava já quase fria, depois de sorvido o líquido negro e quente e os meus olhos, fingindo-se atentos às pequenas letras do jornal, já nada faziam senão caírem para aquela singularidade que, impossivelmente, estava sentada uma ou duas mesas ao lado da minha. estranhos acasos nos reserva a vida, colocar-nos ali, um mendigo e uma rainha separados por uma mesa de café.
quando ela levantou os olhos, jurei que tinha sido para mim. um sorriso abriu-se nos lábios e fê-la mais radiante, com uma pequena ruga no canto do olho, daquelas que aparecem quando os sorrisos são sinceros.
então, nervoso, inspirei o último travo do fumo, pensei levantar-me. as pernas reagiram. antes disso, quando me tirava da cadeira, passou por mim quem acabara de entrar e sentou-se com ela.
ainda assim, ainda que por breves momentos, por dentro, exaltei-me enganado, pensando que era um sorriso para mim. como enganado está quase sempre quem se exalta.
Miguel Tiago