Monday 30 September 2024

- sem título -


enchi o peito com o fumo na mesa do café, quando ainda se podia fumar nos cafés, e olhei para uma outra mesa.

sobre a mesa um cinzeiro vazio, uma bolsa de mulher e um café. ela estava, com os cabelos louros, olhando na direcção da porta como se esperasse alguém.

a minha chávena estava já quase fria, depois de sorvido o líquido negro e quente e os meus olhos, fingindo-se atentos às pequenas letras do jornal, já nada faziam senão caírem para aquela singularidade que, impossivelmente, estava sentada uma ou duas mesas ao lado da minha. estranhos acasos nos reserva a vida, colocar-nos ali, um mendigo e uma rainha separados por uma mesa de café.

quando ela levantou os olhos, jurei que tinha sido para mim. um sorriso abriu-se nos lábios e fê-la mais radiante, com uma pequena ruga no canto do olho, daquelas que aparecem quando os sorrisos são sinceros.

então, nervoso, inspirei o último travo do fumo, pensei levantar-me. as pernas reagiram. antes disso, quando me tirava da cadeira, passou por mim quem acabara de entrar e sentou-se com ela.

ainda assim, ainda que por breves momentos, por dentro, exaltei-me enganado, pensando que era um sorriso para mim. como enganado está quase sempre quem se exalta.

Miguel Tiago

Friday 27 September 2024

**


Aqui
nesta planície de sol suado
dois homens desafiaram a morte, cara a cara,
em defesa do seu gado
de cornos e tetas.

Aqui
onde agora vejo crescer uma seara
de espigas pretas.

Quando os dois camponeses desceram às covas,
ante os punhos cerrados de todos nós,
chorei!

Sim, chorei
sentindo nos olhos a voz
do que há de mais profundo
nas raízes dos homens e das flores
a correrem-me em lágrimas na face.

Chorei pelos mortos e pelos matadores
– almas de frio fundo.

Digam-me lá:
para que serviria ser poeta
se não chorasse
publicamente
diante do mundo?

José Gomes Ferreira

Tuesday 24 September 2024

- sem título -

as pontas dos meus dedos suaves
sobre a pele das tuas ancas
e o meu sussurro atrás do teu corpo nu,
sopra-te no ouvido a palavra absolutamente
necessária.

Miguel Tiago

Saturday 21 September 2024

- sem título -

por que é que as palavras não se respiram?
inspirar
expirar
até à última.

Miguel Tiago

Wednesday 18 September 2024

Lisboa

um barco no tejo,
um abraço,
um beijo,
ao longe uma ponte sobre os telhados
inúmeros, antigos, confusos.

Miguel Tiago

Sunday 15 September 2024

da poesia

os poemas são as nossas dores escritas em letras.

Miguel Tiago

Thursday 12 September 2024

navegação

será o vento a trazer-me o teu nome
nos dias de esquecimento.
será o teu nome a lembrar-me de quem sou
nas noites sem estrelas.

Miguel Tiago

Monday 9 September 2024

Perguntas

Onde estavas tu quando fiz vinte anos
e tinha uma boca de anjo pálido?
Em que sítio estavas quando o Che foi estampado
nas camisolas das teen-agers de todos os estados da América?
Em que covil ou gruta esconderam as suas armas
para com elas fazer posters cinzentos e emblemas?
Onde te encontravas quando lançaram mão a isto?
E atrás de quê te ocultavas quando
mataram Luther King para justificar sei lá que agressões
ao mesmo tempo que víamos Música no Coração
mastigando chiclets numa matinée do cinema Condes?
Por onde andavas que não viste os corações brancos
retalhados na Coreia e no Vietname
nem ouviste nenhuma das canções do Bob Dylan
virando também as costas quando arrasaram Wiriamu e
enterraram vivas
mulheres e crianças em nome
de uma pátria una e indivisível?
Que caminho escolheram os teus passos
no momento em que foram enforcados
os guerrilheiros negros da África do Sul
ou Allende terminou o seu último discurso?
Ainda estavas presente quando Victor Jara
pronunciou as suas últimas palavras?
E nem uma vez por acaso assististe
às chacinas dos Esquadrões da Morte?
Fugiste de Dachau e Estalinegrado?
Não puseste os pés em Auschwitz?
Que diabo andaste a fazer o tempo todo
que ninguém te encontrou em lugar algum?

Joaquim Pessoa

Friday 6 September 2024

Os estivadores


Só eles suam mas só eles sabem
o preço de estar vivo sobre a terra
Só nessas mãos enormes é que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra

Outros rirão e outros sonharão
podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles é que chamo irmão
na vida que em seus gestos principia

Onde outrora houve o deus e houve a ninfa
eles são a moderna divindade
e o que antes era pura linfa
é o que sobra agora da cidade

Vede como alheios a tudo o resto
compram com o suor a claridade
e rasgam com a decisão do gesto
o muro oposto pela gravidade

Ode marítima é que chamo à ode
escrita ali sobre a pedra do cais
A natureza é certo muito pode
mas um homem de pé pode bem mais

Ruy Belo

Tuesday 3 September 2024

QUASE NADA

O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.
Eugénio de Andrade,
in Primeiros Poemas.

Sunday 1 September 2024

O Amor não se desata

Enquanto perverso, rias
Tu fizeste o que podias
Para eu deixar de te amar
Tornaste as noites vazias
E não fosse eu esperar
Anoitecestes os meus dias.
Inventaste mil pecados
Que eu não tinha cometido
(Mil mentiras sem sentido)
Desmanchaste os meus bordados
E retalhaste o vestido
Com que eu me tinha casado
Como bem sabes agora
E hás de sentir vida fora
Tanto mal era escusado
Se te querias ir embora
Não ganhaste com a demora
Senão partires mais culpado.
Não nego que me doeu
Mas juro que até à data
A dor de nada valeu
O amor não se desata
E a tua paixão morreu
Mas a minha não se mata.
Maria do Rosário Pedreira