Sunday, 30 July 2017

DIFICULDADE DE GOVERNAR


1
Todos os dias os ministros dizem ao povo
como é difícil governar. Sem os ministros
o trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
se o chanceler não fosse tão inteligente.
Sem o ministro da Propaganda mais nenhuma mulher
podia ficar grávida.
Sem o ministro da Guerra nunca mais haveria guerra.
E atrever-se-ia a nascer o sol
sem autorização do Fuhrer?
Não é nada provável e, se o fosse,
nasceria por certo fora do lugar.

2
É também difícil, ao que nos é dito,
dirigir uma fábrica. Sem o patrão
as paredes cairiam e as máquinas enchiam-se de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
ele nunca chegaria ao campo
sem as palavras avisadas do industrial aos camponeses:
quem, senão ele, lhes poderia falar na existência de arados?
E que seria da propriedade rural sem o lavrador?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

3
Se governar fosse fácil
não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos
como o do Fuhrer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
e se o camponês soubesse distinguir
um campo de uma fôrma para tortas
não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
É só porque toda a gente é tão estúpida
que há necessidade de alguns tão inteligentes.

4
Ou será que
governar só é assim tão difícil
porque a exploração e a mentira
são coisas que custam a aprender?


Brecht

Thursday, 27 July 2017

A GRANDE NOTÍCIA

A grande notícia
chegou até mim
como um rastro azul
vestido de estrelas,
um clarim de luz
no silêncio inerte,
repentinamente,
num céu cheio de nuvens,
um jacto que surge
e roça a montanha.

O meu pensamento
abriu-se num abraço
para além dos mares,
e a grande notícia
bailava nas ruas
enquanto nos esgotos
os torturadores
pareciam ratos
e o nojo de vê-los
doía na gente.

Um clarim de luz
num céu de nuvens,
foi como irrompeu
a grande notícia
vestida de estrelas.
Só um fogo oculto
consegue acordar
um grilo no inverno
mas quando ele acorda
o frio adormece.

Foi na madrugada
de um dia sem planos
que se revelou
a grande notícia,
e as águas do pântano
não podem mais sê-lo
ao ver, de repente,
no silêncio inerte,
um jacto que surge
e roça a montanha.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Monday, 24 July 2017

HINO AO 1º DE ABRIL


Os milicos milicazes
nunca foram maus rapazes.
Quando matam, quando esfolam,
quando capam, quando amolam,
quando todos se rebolam
prós ianques que os engrolam,
ou quando cantam de galo
ou relincham de cavalo,
ou vão puxando o badalo,
mais o saco do gargalo,
ou quando vendem a terra
e as riquezas que ela encerra,
ou quando rolham quem berra
ou mesmo quem embezerra,
ou quando as serras napalmam,
e com fogo tudo acalmam,
ou quando bancos empalmam
e corruptos se desalmam
é tudo sempre por bem.
De Pelotas a Belém
não duvide nunca alguém
seja fortudo ou pelém,
que os milicos milicazes
nunca foram maus rapazes.

Jorge de Sena

Friday, 21 July 2017

PONTE SOBRE O TEJO

Ó ponte que tens
o nome atrasado
do atraso que temos,
devemos salvar-te
e dar-te outro nome
que traga lá dentro
o sol e o trigo,
um filho no ventre
e o sangue na terra
que floriu nos cravos.

Devemos chamar-te
Catarina Eufémia,
ó ponte que tens
o nome atrasado
do atraso que temos,
e os barcos do Tejo
com as velas pandas
darão forma ao sopro
da semeadora
Catarina Eufémia.

Para que o passado
não mais se repita,
e os gestos dos monstros
sejam apagados
(mas nunca esquecidos)
devemos chamar-te
Catarina Eufémia,
ó ponte que tens
o nome atrasado
do atraso que temos.

Rumo lá no alto
olhando Lisboa,
no frémito novo
de sabê-la nossa
e poder dizê-lo,
ponte que nos liga
no fluir presente
que já é futuro,
nós vamos chamar-te
Catarina Eufémia.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Tuesday, 18 July 2017

COMEI VOSSOS PERUS


Comei vossos perus
burgueses anafados
e dai esmolinha aos pobres
que tendes esfomeados.
Um dia há-de chegar
em que sereis assados
não para subir ao céu.


Jorge de Sena

Saturday, 15 July 2017

POEMA DE ABRIL

A farda dos homens
voltou a ser pele
(porque a vocação
de tudo o que é vivo
é voltar às fontes).
Foi este o prodígio
do povo ultrajado,
do povo banido
que trouxe das trevas
pedaços de sol.

Foi este o prodígio
de um dia de abril,
que fez das mordaças
bandeiras ao alto,
arrancou as grades,
libertou os pulsos,
e mostrou aos presos
que graças a eles
a farda dos homens
voltou a ser pele.

Ficou a herança
de erros e buracos
nas árduas ladeiras
a serem subidas
com os pés descalços,
mas no sofrimento
a farda dos homens
voltou a ser pele
e das baionetas
irromperam flores.

Minha pátria linda
de cabelos soltos
correndo no vento,
sinto um arrepio
de areia e de mar
ao ver-te feliz.
Com as mãos vazias
vamos trabalhar,
a farda dos homens
voltou a ser pele.

Sidónio Muralha
(«Poemas de Abril» - 1974)

Wednesday, 12 July 2017

VIRÁ!


Virá!
Oiço o seu ruído.

Garanto-vos a luz
para breve. Prometeu
fogo e amor à terra.
Por isso canto e amo.

Virá! Oiço o seu ruído!
Então, ai dos soturnos;
dos que agora mancham
este querido mundo.

Jesus Lopez Pacheco

Sunday, 9 July 2017

OS HOMENS DA MINHA RUA DE CASAS DE MADEIRA

Os homens da minha rua de casas de madeira,
telhadas de folha velha,
usam sempre o chapéu atirado para os olhos.
Deslizam em silêncio, embuçados e tristes,
como quem vem de longe, como quem vai para longe.
A minha rua é longa,
com mil e uma pequeninas poças de água.
E tão estreita
que nunca o sol das ruas largas sem casas de madeira
a pôde visitar.
E os homens contam as poças.
E de olhos nas poças, nas pedras, nas poças,
deslizam em silêncio, embuçados e tristes,
como quem vem de longe, como quem vai para longe...

Porque usarão - porquê? - sempre o chapéu sobre os olhos,
os homens da minha rua de casas de madeira?

Mário Dionísio
(«O Homem Sozinho na Beira do Cais»)

Thursday, 6 July 2017

O Sonho é a nossa arma


Há quem julgue que nos venceu
só porque estamos para aqui, famintos e nus,
de novo sem terra nem céu,
a apanhar do chão,
às escondidas do luar.
os frutos podres caídos dos ramos.

Mas não.

Temos ainda uma arma de luz
para lutar:
SONHAMOS.

... enquanto os outros, os traidores,
sem lutas nem cicatrizes
entregam a terra ao rasto dos gamos
e douram os olhos dos velhos senhores
com voos de perdizes...

Sim, sonhamos.
E o sonho quem o derrota?
- mesmo quando vamos
perdidos na rota
de um barco sem remos
na tempestade de um vulcão.

Sim, camaradas, sonhamos.

SONHEMOS!

O Sonho é também acção.

José Gomes Ferreira

Monday, 3 July 2017

POEMAS DO CÃO DANADO (4)

Deixa lá, companheira!
Que havemos de fazer?
Fecharam-nos a porta e quase nos cuspiram.
Pisaram-te e, a mim, vergastaram-me as mãos.
Deixa lá! Deixa lá! Eu beijarei teus pés
e tu farás sarar as minhas mãos.
Para lá da última casa ainda há terra
e céu e água e luz...
Ainda há vida para lá.

Deixemos para eles o som vazio das gargalhadas
e a luxúria do oiro.
Ainda há vida para lá.
O nosso horizonte é mais vasto em cada instante.
A nossa voz mais rica em cada instante.
O nosso querer mais certo em cada instante.
Ainda há vida para lá.
Sigamos nossa rota, companheira.
Enxugarei teu rosto com cuidado.
Tu farás o meu canto.
E para além das barreiras do tempo
milhões de homens nos esperam com os braços abertos,
que desde a primeira hora serão braços de irmãos.

Mário Dionísio
(«O Homem Sozinho na Beira do Cais»

Saturday, 1 July 2017

E subiu ao Trono o primeiro Governo da Contra-Revolução


E agora
que os gigantes do avesso
nos querem transformar em subgente?

Que nos resta? O recomeço
do frio das algemas
e os grilhões desumanos,
para voltar inutilmente
a escrever poemas
recusando-me outra vez a ter mais de 20 anos?

Que fazer agora,
se até o Sonho nos querem roubar?

Exigir talvez
ao sol que, todas as noites dorme na lua e chora
com melancolia,
ouse de súbito acordar
- para que brilhe sempre o Espanto de Haver um Eterno Dia.

José Gomes Ferreira