Thursday, 3 July 2025

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Quando estiveres velha e grisalha e cheia de sono,
E a cabecear junto ao lume, vai buscar este livro,
E lê devagar, e sonha com o olhar brando
Que outrora foi o teu, e com as suas sombras fundas;
Quantos amaram os teus instantes de ditoso encanto,
E amaram a tua beleza com um amor falso ou sincero,
Mas só um amou a alma peregrina que trazes em ti,
E amou as mágoas do teu rosto em transformação;
E, debruçando-te junto da grelha resplandecente,
Murmura, com certa tristeza, que o Amor fugiu
E foi caminhando pelas montanhas até ao alto
E escondeu a face entre uma vastidão de estrelas.
W. B. Yeats
(tradução de Vasco Gato)

Tuesday, 1 July 2025

Canção Breve

Tudo me prende à terra onde me dei:
rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.
Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança e o calor
de uns dedos com restos de ternura.
Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia.

Eugénio de Andrade 

Monday, 30 June 2025

Soneto da viagem a Marte


O tempo não tem sul e não tem norte
seja qual fôr a hora de quem parte,
não tem fronteiras, não possui estandarte,
quem for a Marte irá sem passaporte.

Nós teremos partido para a morte
quando os homens partirem para Marte
e embora Marte já não nos importe,
importante, ó futuro, é importar-te.

Importante, ó futuro, é quando a terra
falar da fome e descrever a guerra
como histórias lendárias de gnomos.

Os dias forem lúcidos, translúcidos,
e a vida, ao sabor dos dias lúcidos,
se esqueça dos selvagens que nós fomos.

Sidónio Muralha, 
"O Pássaro Ferido", 1972

Friday, 27 June 2025

Liberdade

 
A liberdade conhece-se pelo seu fulgor.
Quatro homens livres não são mais liberdade do que um só. Mas são mais revérbero no mesmo fulgor.
Trocar a liberdade em liberdades é a moda corrente do libertino.
Pode prender-se um homem e pô-lo a pão e água. Pode tirar-se-lhe o pão e não se lhe dar a água. Pode-se pô-lo a morrer, pendurado no ar, ou à dentada, com cães. Mas é impossível tirar-lhe seja que parte for da liberdade que ele é.
Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime. Quanto mais perseguido mais perigoso. Quanto mais livre mais capaz.
Do cadáver dum homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro - nunca sairá um escravo.
Mário Cesariny

Tuesday, 24 June 2025

Não nos deixam cantar

 
Não nos deixam cantar, Robeson
meu canário com asas de águia
Meu irmão negro com dentes de pérola
Não nos deixam cantar as nossas canções.
Têm medo, Robeson
medo da aurora, medo de olhar
medo de ouvir, medo de tocar.
Têm medo de amar,
medo de amar como amou Ferhat, apaixonadamente.
(Decerto que também vocês, irmãos negros,
têm um Ferhat, como é que tu lhe chamas, Robeson?)
Têm medo da semente e da terra,
medo da água que corre,
medo da lembrança.
A mão de um amigo que não deseja
nem desconto nem comissão nem moratória
igual a um pássaro quente
não apertou nunca a sua mão.
Têm medo da esperança, Robeson, medo da esperança!
Têm medo, meu canário com asas de águia,
Têm medo das nossas canções, Robeson…
Nazim Hikmet

Saturday, 21 June 2025

Impossível é não Viver


Se te quiserem convencer de que é impossível, diz-lhes que impossível é ficares calado, impossível é não teres voz. Temos direito a viver. Acreditamos nessa certeza com todas as forças do nosso corpo e, mais ainda, com todas as forças da nossa vontade. Viver é um verbo enorme, longo. Acreditamos em todo o seu tamanho, não prescindimos de um único passo do seu/nosso caminho.
Sabemos bem que é inútil resmungar contra o ecrã do telejornal. O vidro não responde. Por isso, temos outros planos. Temos voz, tantas vozes; temos rosto, tantos rostos. As ruas hão-de receber-nos, serão pequenas para nós. Sabemos formar marés, correntes. Sabemos também que nunca nos foi oferecido nada. Cada conquista foi ganha milímetro a milímetro. Antes de estar à vista de toda a gente, prática e concreta, era sempre impossível, mas viver é acreditar. Temos direito à esperança. Esta vida pertence-nos.
Além disso, é magnífico estragar a festa aos poderosos. É divertido, saudável, faz bem à pele. Quando eles pensam que já nos distribuíram um lugar, que já está tudo decidido, que nos compraram com falinhas mansas e autocolantes, mostramos-lhes que sabemos gritar. Envergonhamo-los como as crianças de cinco anos envergonham os pais na fila do supermercado. Com a diferença grande de não sermos crianças de cinco anos e com a diferença imensa de eles não serem nossos pais porque os nossos pais, há quase quatro décadas atrás, tiveram de livrar-se dos pais deles. Ou, pelo menos, tentaram.
O único impossível é o que julgarmos que não somos capazes de construir. Temos mãos e um número sem fim de habilidades que podemos fazer com elas. Nenhum desses truques é deixá-las cair ao longo do corpo, guardá-las nos bolsos, estendê-las à caridade. Por isso, não vamos pedir, vamos exigir. Havemos de repetir as vezes que forem necessárias: temos direito a viver. Nunca duvidámos de que somos muito maiores do que o nosso currículo, o nosso tempo não é um contrato a prazo, não há recibos verdes capazes de contabilizar aquilo que valemos.
Vida, se nos estás a ouvir, sabe que caminhamos na tua direcção. A nossa liberdade cresce ao acreditarmos e nós crescemos com ela e tu, vida, cresces também. Se te quiserem convencer, vida, de que é impossível, diz-lhe que vamos todos em teu resgate, faremos o que for preciso e diz-lhes que impossível é negarem-te, camuflarem-te com números, diz-lhes que impossível é não teres voz.
José Luís Peixoto

Wednesday, 18 June 2025

 
Se não puderes ser um pinheiro, no topo da colina,
Sê um arbusto no vale — mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
um arbusto, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um arbusto, sê um pouco de relva,
E dá alegria a algum caminho.
Se não puderes ser almíscar, sê, então, apenas uma tília —
Mas a tília mais viva do lago!
Não podemos ser todos capitães; temos que ser tripulação.
Há algo para todos nós aqui.
Há grandes e pequenas obras a realizar,
E é a próxima a tarefa que devemos empreender.
Se não puderes ser uma estrada, sê apenas uma senda.
Se não puderes ser Sol, sê uma estrela;
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso —
Mas sê o melhor do que quer que sejas!
Douglas Malloch